Eu já estava sentado no sofá. Olhei na direção dos colegas e houve um silêncio. Sorriam na minha direção e eu soube que era de mim que falavam.
“ – O quê?”
“ – Nada. É que eu tava dizendo que você é um contador de histórias, um Forrest Gump”. Fiquei constrangido, claro. É difícil evocar um ianque, sem se envergonhar. Mas aquilo permaneceu comigo. “Um contador de estórias” talvez,… de causos, então. Isso, sim. Ah, isso é bonito.
Há mesmo muitas estórias…
Como daquela vez em que…eu tinha entrado naquela doçaria para comer o mesmo bolo prestígio e tomar o mesmo suco de laranja de todos os dias. A minha vida fluía sem fruição, sem consciência, esquecida de mim e do redor. E era uma tarde comum de décadas atrás. Faz tempo, mas não o suficiente para que se apagasse por completo.
Ao meu lado sentara-se um rapaz que devia ter mais ou menos a mesma pouca idade que eu naquela época. Claro que não olhei muito, que não se deve olhar para as pessoas: pode incomodar. Não houve muito mais que segundos depois. Aquela pressão no meu ombro direito, os cabelos pressionando com força, mas devagar e seu corpo magro, então, todo teso e sua cabeça batendo violentamente contra o piso. Eu nunca mais me esqueci daquele átimo em que o chão tremeu sob meus pés…
– “Está tudo bem. Ele teve um ataque. Agora é só proteger a cabeça dele e dar um espaço para ele respirar.” Todos obedeceram. A moça falava como quem soubesse o que fazer. Alguns ainda ficaram por perto, outros se afastaram assustados. Eu me voltei para o que devia fazer (!). Mas os gostos não se misturavam na boca. Não senti, como sempre, o açúcar do bolo roubar a doçura do suco, nada funcionava mais.
“ – Você está bem?” Ele só assentiu com um gesto calado.
“ – Tem certeza? Não precisa mesmo que chamemos uma ambulância?” Antes de responder que não, voltou-se o olhar para o nada e encontrou meus olhos lá. Aquele rapaz de camisa branca me viu e fez com que eu olhasse profundamente para dentro de mim. Saí daquele lugar como se eu pudesse acreditar que nada tivesse havido. Mas um sentimento de impotência, de incompetência ia me assombrando pelo caminho. Como eu pude não oferecer ajuda de alguma forma? Ele estava bem do meu lado! Chegou-se a encostar em mim!
Por mais que eu tentasse me perdoar, dizendo para mim mesmo que aquele constrangimento era infundado, porque, afinal “não era comigo”, no fundo, eu sempre soube que era. Perder a oportunidade de se apresentar diante da vida é sempre um vexame.
E é claro que, depois de tanto tempo decorrido, nem me sondava aquela tarde. Mesmo porque era o fim da manhã. E eu entrava, então, num restaurante por quilo, desses que parecem ter havido só mesmo em Mogi. “Nem em São Paulo há tão bons!”, contou-me certa vez uma colega (Deus, quanta distinção!). E era novo aquele. Tinha música ao vivo e tudo. E Chovia uma chuva gelada dessas perfeitas para se ficar em casa.
Havia pouca gente. A comida era boa mesmo. Mas o rapaz cantando!… quanta afinação, quanta delicadeza! Não havia comida que distraísse. Talvez porque a fome de Beleza nos doa mais em certas ocasiões… o fato é que mais do que comer, naquele momento, eu queria mesmo era ouvir a música… “Se me faltares, nem por isso eu morro… Eternamente,…” Ah, era Iolanda que ele cantava. As minhas mãos ficaram frias demais, prontas para agradecer. Quando ele estava terminando antes que eu decidisse, um outro homem, na mesa à frente, levantou-se e – sozinho! – aplaudiu um aplauso de vigor e certeza que calou minhas mãos. Fiquei desconcertado, vergonha alheia, achava… Saí rápido. E o chão voltou a tremer sob os meus pés.
Depois de mais um longo tempo ter-se ido e me deixado a sensação de que eu nascia de novo, sem me lembrar de tanta coisa vivida, tantas estórias… eu estava agora no Salão do Afogado, plena Festa do Divino. Centenas de pessoas naquele lugar. Minha mulher, meus dois filhos ainda crianças e eu numa mesa perdida naquele mar de anonimato. À frente de todos nós, um cantor se apresentava lindamente. Cantava como se não precisasse mesmo que ninguém o ouvisse. Cantou uma, duas, três músicas com a alma bonita que só os bons artistas têm. Minhas mãos já me lembravam do dever, o chão começou a vibrar… e antes que o cantor emendasse outra, eu me levantei e… APLAUDI!
Ah, que delícia é aplaudir, cuidando de tomar o rosto de quem se aplaude e dizer um mundo de coisas: Como você é bom! Como vejo Beleza no que faz! Obrigado por dividir comigo seu talento! Obrigado por ser a oportunidade de eu me mostrar mais humano!
“ – Pai! Tá todo mundo olhando pra você! Que vergonha” Era a minha filha me defendendo dos olhares, partilhando o vexame do pai com o irmãozinho, que ria e ria. “Tudo bem, filha. Tudo bem…” Era parte do plano misterioso de Deus que eu lhes deixasse um exemplo , posso entender isso agora.
Ao sair, desprendi-me do grupo para ir ter com o cantor. Apertei-lhe a mão e ainda disse o quanto ele era talentoso, como tinha sido bom ouvi-lo. Ao ver aquilo, então, a pequena Beatriz minha, parecia entender aliviada:
“ – Ah, você conhece ele…”
“ – Não. Eu não o conheço, filha.”
Aprendi que não existe essa coisa de vergonha alheia. O que existe é vergonha de não ser o que se quer, de não dizer o que se deseja, de não se manifestar. Embora a vida não se repita exatamente, vamos tendo oportunidades de reparar certos equívocos. Quando não se serve como poderia a alguém, quando não se aplaude.
Quando vejo essa legião de gente imperfeita tomando as ruas nesse tempo de t(T)emer… fico pensando que o que talvez os chame para a luta seja também o chão tremendo sob seus pés.
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