Nas últimas semanas, quem acompanha o noticiário literário (sim, ele existe), deve ter topado na pedra-declaração de Paulo Coelho sobre o livro Ulysses de James Joyce, considerado pelo autor brasileiro como pernicioso: “Um dos livros que fez esse mal à humanidade foi ‘Ulysses’ [clássico de James Joyce], que é só estilo. Não tem nada ali. Se você disseca ‘Ulysses’, dá um tuíte.” Vou me permitir ser clichê – O pior cego é aquele que não quer ver.
Ulysses, em sua nova tradução, num trabalho de dez anos de Caetano W. Galindo e lançado pela Companhia das Letras em associação com a lendária editora Penguin, tirando a introdução, a história em si tem pouco mais de mil páginas. Quando Coelho diz que o livro pode ser reduzido a um tuíte, ele está reduzindo todo um país a isso, porque em Ulysses existe a Irlanda e seu povo tendo como palco, Dublin. Mas Joyce era um homem que odiava as guerras, tanto as enfrentadas pela Irlanda, quanto à época em que escreveu Ulysses, entre 1914 e 1921, atravessando a Primeira Grande Guerra. Assim, o livro foi um protesto à violência, dos corpos mutilados pela guerra, do heroísmo, à própria figura mitológica de Ulisses na Odisséia de Homero.
O inverso ao heroísmo vem do homem comum, no caso, o protagonista, Leopold Bloom e tirar o máximo possível de sua vidinha num dia. Bloom é o personagem mais detalhado da história da literatura, talvez possa se equiparar ao narrador-protagonista Marcel na saga Em busca do Tempo Perdido de Proust. Só que Proust nunca entrou no banheiro e ploft, ploft, como Joyce faz com Bloom. Todas as suas visões, pensamentos, desejos, necessidades, opiniões, filosofia de vida, humilhações, ficamos por dentro de seu mundo interior, é o herói que suporta a dor e não a provoca. Como também das outras personagens como Molly Bloom, a fogosa esposa de Leopold e Stephen Dedalus, que é protagonista no outro livro de James Joyce, Retrato do Artista Quando Jovem.
Para o escritor Michel Butor em seu livro Repertório, o fatídico 16 de junho de 1904 é: “um dia, através do qual passeamos por todos os bairros da capital da Irlanda católica. Mas, ao invés de assistirmos a ele apenas do ponto de vista do narrador, que aparece entre suas criações, vivemos, esse dia, em grande parte ‘através’ das três personagens principais, Stephen, Bloom e Molly Bloom. Através de Stephen, nos três primeiros capítulos, através de Bloom (mais frequentemente) na segunda parte. No fim dessa segunda parte (é o episódio do bordel), numa dramatização alucinada, vemos ao mesmo tempo através de Bloom e Stephen. Enfim, o livro se termina pela imensa frase sempre recomeçada e nunca terminada, o interminável monólogo que Molly Bloom se conta a ela mesma, entre momento em que o marido a acordou e aquele em que readormece.”
O livro é divido em 18 partes (como na Odisséia) com títulos referentes à mitologia grega, aos órgãos humanos, às Artes, símbolos e, em cada parte, uma forma narrativa. Sim, Ulysses é um livro de estilos, a ideia de James Joyce era transformar a tradição do romance, e havia a necessidade de, num mundo caótico, contextualizá-lo mais próximo possível da realidade humana, de seu corpo e psique. T.S Eliot disse que Joyce queria “um meio de controlar, de ordenar, de dar uma forma e um significado ao imenso panorama de futilidade e anarquia que é a vida contemporânea”.
James Joyce teve imensas dificuldades para a publicação do livro, considerado sujo, uma blasfêmia, entre outros adjetivos desesperadores para qualquer escritor, pois o livro é carregado de uma atmosfera de libertação de pensamentos e preconceitos. Bloom, por exemplo, é considerado um ser “andrógino” por seu lado feminino se fazer presente durante o livro de maneira que irrita os durões irlandeses que o acusam de ser conivente com a traição de sua esposa, Molly Bloom
Há uma infinidade, até hoje, de estudos críticos sobre o livro, incessantes como toda obra universal merece. Ao ler Ulysses, por diversas vezes, pensei que Joyce estava possuído pelo seu demônio e é provável, apesar da complexidade da obra que exigiu uma inteligência superior para construí-la. A verve inspiradora escreve, a inteligência corrige.
Não tive como não pensar, ao final do livro, que ali somente existia possibilidades para os escritores. Quando Paulo Coelho diz que em Ulysses não há nada, opinião dada talvez por ser um mau leitor, só pude discordar. Pode até não gostar do que leu, mas dizer que é vazio, é pobreza de interpretação. O livro é intenso, complexo, paranóico, surrealista, fantástico-realista, irônico, sarcástico, ácido, sensual, ateu, católico, protestante, há palavras inventadas, expressões em latim e outras línguas, mas tem uma leitura fluente e rápida, como se alguém estivesse contando a história oralmente (possível influência, no caso, do teatro grego). Nunca mais o romance foi o mesmo? Sim, mas não significa opressão, o que fica é a impossibilidade de cópia, não se escreve à la Ulysses, escreve-se com as possibilidades trazidas pela coragem de Joyce na maneira com que, nós, seres humanos, podemos contar uma história.
Aliás, o dia 16 de junho é comemorado no mundo (incluindo o Brasil) o Bloomsday. Não é pra qualquer um.
Para finalizar, um exemplo de um dos recursos de James Joyce, o fluxo de consciência, neste seguinte parágrafo de Stephen Dedalus onde, primeiro, temos o narrador onisciente, depois imagens de lembranças, uma ação, o narrador novamente e, por fim, um pensamento:
“Seus lábios lamberam e libaram lábios de ar descarnados. Boca em seu útero. Últero, toduterante sepulcro. Sua boca moldava alento efluente, infalado: uiihah: rugido de planetas catárticos, globulares, chamejantes, rugindoindoindoindoindo embora. Papel. As cédulas, porcaria. A carta do velho Deasy. Aqui. Agradecendo por sua hospitalidade rasgue fora o fim em branco. Virando as costas para o sol ele se inclinou bastante até uma mesa de pedra e rabiscou palavras. Com essa são duas vezes que eu esqueço de levar umas tirinhas do balcão da biblioteca.”
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