Maio de 1973. No Centro de Convenções do Anhembi, em São Paulo, está o primeiro time da gravadora Phonogram. Não, não é um dos grandes festivais. Em vez de competição, a ideia é somar. Cada artista sobe ao palco e apresenta uma canção conhecida do público, uma inédita, e de repente uma parceria com outro cantor. Aqui estão Elis, Vinícius, Toquinho, Caetano, Erasmo, Gal, Bethânia, Chico, Simonal, Jair Rodrigues, Raul e tantos outros. Estão aqui também Gilberto Gil e Jorge Ben, os personagens principais da história que a seguir será contada.

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Em 1973, Gil havia regressado recentemente de Londres, onde amargurou o exílio ao lado de Caetano. Jorge passava por uma transição, uma nova sonoridade após discos quase perfeitos com o Trio Mocotó. Gil era Expresso 2222, Oriente e Back to Bahia. Jorge era Charles Jr., Cosa Nostra e Por que é proibido pisar na grama. Eis que então acontece no palco, diante dos olhos de todos, em um raro momento onde o sublime metafísico se faz visível, o encontro de duas das almas mais brilhantes da história da música. Cercados por pessoas extasiadas, Gil e Jorge ritualizam Jazz Potatoes e Filhos de Gandhi, enquanto Caetano se debruça sobre os pés de Ben, testa ao solo em admiração.

O que aconteceu no Phono 73 seria o suficiente para uma boa história. Mas a amizade entre os dois gênios da música popular brasileira estava só começando. Dois anos se passaram até o episódio seguinte. Anos que viram acontecer coisas como o lançamento da Tábua de Esmeraldas e o Maracatu Atômico, com Jorge Mautner. Era 1975 e o produtor musical Robert Stigwood, dono da RSO Records, agenciava um dos mais aclamados guitarristas de todos os tempos, o “SlowhandEric Clapton. Stigwood decidiu trazer o músico britânico para passar férias no Brasil, e transmitiu a seguinte ideia pelo telefone ao amigo André Midani, presidente da Phonogram à época: “por que você não faz uma reunião do Clapton com os artistas brasileiros?”. Seria uma noite inesquecível para a música.

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Para o jantar na casa de Midani foram convidados Caetano, Rita Lee, Erasmo Carlos, e entre outros nomes, Gil e Jorge. “O Eric chegou com a guitarra dele, uma guitarra toda branca que na época fez todo mundo dizer ‘oooh’. Aí os meninos foram buscar cada qual um instrumento qualquer. O Caetano um violão, o Gil um violão, a Rita tomou emprestado um violão. Tinha esses que eu mencionei, tinha certamente o Erasmo, tinha o Cat Stevens também – era um grupo de certa qualidade. Teve um momento onde todo mundo se sentou no chão, e começaram, assim, como quem não quer nada, a tocar”, conta Midani. “De repente, o Cat saiu da roda, a Rita também, não sei se nessa ordem, saiu o Caetano. Eu sei que no fim ficaram Clapton, Gil e Jorge. Aí o Clapton disse: “para mim não dá mais”. E também saiu. Ficaram só Gil e Jorge e foi memorável, memorável”, completa.

Na memória de Jorge Ben a história é um pouco diferente. “O Midani pediu ao Eric Clapton para tocar. Todos queriam ver o considerado monstro da guitarra, pô. Ele fez doce e não tocou, não quis tocar pra gente. Aí, o Midani falou assim: ‘Já que ele não quer tocar, toca vocês aí e mostra pra ele como é que é’. Aí, eu e Gil, começamos a tocar e a coisa foi esquentando”. Do resultado da jam, entretanto, os dois se lembram bem. “Eu fiquei tão impressionado, mas tão impressionado, que eu virei e disse pro (Armando) Pitigliani: ‘amanhã os dois têm que entrar no estúdio’. Não foi ‘amanhã’, claro, porque todo mudo foi dormir 5 horas da manhã, mas dois, três, quatro dias depois”, conta o presidente da gravadora à época.

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Alguns dias depois, portanto, Gil e Jorge entraram em estúdio para gravar um disco juntos. Sem grandes ensaios, sem partituras, sem muita edição. Acompanhados de Wagner Dias, no baixo, Djalma Corrêa, na percussão, algumas garrafas de licor de jurubeba (uma erva medicinal encontrada no sertão nordestino com a qual se faz remédios e uma espécie de “vinho”), e sabe-se lá quais mais aperitivos, dois dos violões mais criativos da música brasileira se comunicaram por horas, em um balé da criatividade, um resgate à essência tribal do uso dos instrumentos musicais. Juntos, inventaram de improviso um universo paralelo, sofisticado, construído pela expressão sincera de palavras, sons e sentimentos.

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Nove músicas foram gravadas em dois dias de estúdio, quatro delas ultrapassando os 10 minutos de duração. Misturando no repertório algumas canções de Gil (Nega, Essa É pra Tocar no Rádio) com outras de Jorge (Morre o Burro Fica o Homem, Taj Mahal), e outras criadas na hora (Jurubeba, Meu Glorioso São Cristóvão), Gil e Jorge misturaram o auge de sua criatividade, fazendo dali surgir um dos maiores discos já produzidos (o maior disco brasileiro na opinião deste que vos escreve). Lançado em 1975 como um vinil duplo, Gil e Jorge: Ogum, Xangô (os orixás de cada um, respectivamente) não foi um grande disco para o mercado, mas bem-aventurado aquele que guardou uma cópia em vinil até hoje.

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Na minha vida foi um disco transformador. Embora tenha sido apresentado ao “Babulina” pela Tábua de Esmeraldas, foi o disco com Gil que me permitiu conhecer a genialidade do músico Jorge Ben. Mais do que isso: nem todos os textos descreveriam os infinitos caminhos de sensações e pensamentos que o ritual protagonizado por Gil e Jorge me possibilitou percorrer. Com este disco aprendi a sentir a música. Desde então, já se passaram mais de 7 anos, e provavelmente mais de 700 audições, e o meu conselho, em tom de devoção, continua o mesmo: por favor, escutem esta obra-prima.


1. Meu Glorioso São Cristóvão 00:00
2. Nega 08:13
3. Jurubeba 18:50
4. Quem Mandou (Pé na Estrada) 30:32
5. Taj Mahal 37:25
6. Morre o Burro, Fica o Homem 52:12
7. Essa É pra Tocar no Rádio 58:20
8. Filhos de Gandhi 01:04:36
9. Sarro 01:17:50

 

*Entrevistas 1, 2 e 3
**Phonogram, Philips, Polygram e Universal são diferentes fases ou selos do mesmo grupo

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