Ouso dizer que o ódio entre classes é o culpado de 90% dos conflitos importantes da humanidade. As relações conflituosas se baseiam, em sua maioria, em uma questão de dominados x dominantes, sejam em esfera macro ou micro, entre estados ou pessoas. Mesmo as pelejas entre dominados se dão pela ambição de ocupar a outra esfera social. E as lutas entre dominantes, pelo medo de ser relegado a proletário.
No Brasil, esses conflitos de classes são sufocados pela harmonia que requer uma sociedade pautada pelo lazer e pelo bem-estar alienados. Distraídos pela confusão de tons de pele e de formatos corporais, não percebemos os preconceitos do dia a dia. As classes se misturam e se suportam com um fingimento artístico.
Essa resignação foi ferida gravemente com algo inesperado. O Programa Mais Médicos e a vinda de profissionais estrangeiros, em especial cubanos. Não parece haver conexão, não é? Não fosse a elite brasileira tão preconceituosa e a classe médica tão corporativista.
Bem sabemos que Medicina aqui é uma profissão, em muitos casos, geradora de dinheiro e principalmente status. Algo nobre, menos no sentido humanitário, mais no sentido medieval. Maioria de brancos, bem estudados e com refinada classe. Poderiam ser, em maioria, moradores do Palácio de Versalhes.
Mergulhe na alta sociedade francesa dos anos 1700. Imagine que cruzam os portões do palácio mestiços de toda espécie para residir onde antes era privilégio da nobreza local e desfrutar de suas benesses. Brasil, 2013: o status da medicina corre o risco de ser compartilhado entre a elite nacional e estrangeiros de diferentes tons de pele. Volte à França Absolutista: com a chegada do proletariado, a elite vai ter que trabalhar.
Quando se cogitou a implementação do Programa Mais Médicos, os corporativistas reclamaram que deveria ser dada preferência ao profissional brasileiro, isso aconteceu, mas o brasileiro se negou a atender a demanda. A reclamação seguinte foi que a medicina de Cuba não atendia às exigências nacionais, sendo que é uma das melhores do mundo, segundo a OMS, e localizada num país tropical, que tem doenças semelhantes às nossas.
Pouco tempo depois, a desculpa passou a ser o pequeno salário dos estrangeiros (superior a R$ 3 mil) e uma suposta preocupação com o trabalhador vindo de fora, que caiu por terra definitivamente com a recepção diabólica que os cubanos tiveram por parte de seus colegas brasileiros, que os vaiavam e chamavam de escravos.
Imagine você, que essa guerra de classes não é só entre profissionais de uma mesma área – mas de países com princípios econômicos distintos. É, principalmente, entre doutores e pacientes. Se o preconceito e o ódio de classes ganharam a atenção da mídia por causa dos ataques recentes, eles se mantêm há muito tempo nos corredores de hospitais públicos em periferias, onde a elite tem que se constranger a meter a mão em pobres e ajudá-los a salvar suas vidas. A pressão é tanta que muitos envergadores do jaleco branco acabam tendo que bater o ponto e ir embora sem trabalhar, mas recebendo robustos salários e status. A esses, Hipócrates deixou algo: a variação pejorativa de seu nome. Já a Medicina, ficou pelo caminho.
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