Domingo tinha tudo para ser mais um dia chuvoso e cinza. Estava lá na correria da Paulista em meio a buzinas e o bocejar de um sol enfraquecido, enquanto caminhava para a casa do jardim de rosas. Depois de pisar em três poças ao atravessar a rua, entro em uma sala quentinha com carteiras pretas e lá estava sentado o dono de um nome exótico, cabelos negros e olhos de pergunta.
Klester Cavalcanti, jornalista recifense, de bem com a vida e dono de uma ousadia para poucos. Para quem não o conhece, não se acanhe, ele te dará um autógrafo grátis enquanto te arranca uma gostosa risada. Klester já conquistou dois prêmios Jabuti de Literatura em 2005 e 2007 pelos livros Viúvas da Terra e O Nome da Morte. O jornalista também ganhou o prêmio Natali Prize, o mais importante do Jornalismo de Direitos Humanos do mundo, assim como também foi agraciado pelo Prêmio Vladimir Herzog.
Há quase um ano, Klester embarcava numa aventura em que muitos jamais se arriscariam. Foi para a Síria, em meio a ao conflito entre o governo sírio e os chamados “rebeldes” do Exército Livre da Síria, para uma reportagem especial para a revista IstoÉ. Dessa experiência nasceu o livro Dias de Inferno na Síria, no qual relata a situação aterrorizante vivida em um país em guerra.
Klester nos contou ontem na salinha da Casa das Rosas que sempre teve a vontade de estar num país em conflito, e achou interessante um jornalista mostrar algo desse tipo. Assim que conseguiu o visto do governo sírio, viajou e se deparou com uma realidade que muitas vezes estava mascarada. Ele sabia da situação da cidade de Homs como mais afetada, e queria mostrar a vida e os conflitos reais de uma cidade em guerra. Assim ele planejava vivenciar como é o cotidiano dessas pessoas e compreender a história dos rebeldes.
Desafiou o governo sírio, não ficou longe do conflito e saiu de Damasco direto para Homs. Klester não chegou a concretizar seu plano, pois acabou sendo preso sem nunca saber o por quê. Suas coisas foram confiscadas, apesar de ter os documentos autorizados para portar o material de imprensa, mas acabou no presídio por uma semana.
O que parecia ser o fim de sua reportagem tornou-se a chama para continuar o ofício de jornalista literário. No livro ele relata a agonia e o terror vividos naqueles dias de cárcere. Numa pequena cela junto a mais de 20 homens, Klester se deparou com os horrores da guerra e o impacto desse quadro na vida dos cidadãos. Empresários, negociantes, lojistas, todas as camadas sociais atingidas pelo conflito. Pessoas que faliram seus negócios e passaram a contrabandear cigarros para alimentar as famílias, meninos que se indignaram e se juntaram aos rebeldes para questionar as autoridades.
A Síria torna-se um real cenário de guerra, em que os personagens e as dores não são ensaios. Klester teve a sensibilidade e a coragem de poucos, venceu a barreira idiomática e relata no livro as histórias de vida das pessoas que o ajudaram e se identificaram com sua causa. O gesto bonito desse jornalista lembra a cena do filme Além da Eternidade (Always, 1989) em que o piloto do avião dá a vida pelo amigo, e Klester nos mostra o lado humanístico ao arriscar sua segurança, ao vencer barreiras, a suportar a agonia e demonstrar o que muitas pessoas perderam: a capacidade de se ver no outro.
O medo ao terror não foi suficiente frente à curiosidade desse grande jornalista: em suas fotos e vídeos ele ilustra cenas reais do verdadeiro caos. Em meio a explosões e a massa cinzenta, ele choca, assim como a cena final de Valsa com Bashir (Val sim Bashir, 2008). Porém a amizade e companheirismo de seus colegas de cela, e das pessoas que o ajudaram em sua trajetória, nos confirmam que a esperança e a bondade continuam nos lugares e situações mais inusitadas.
*Sahafi: termo árabe para “jornalista”, ou “jornalista estrangeiro”.
**O livro Dias de Inferno na Síria foi publicado pelo selo Benvirá da editora Saraiva e está disponível nas livrarias.
Mais informações: http://www.benvira.com.br/diasdeinfernonasiria/index.html
[popup_anything id="11217"]