Fotografia por Mek

Era uma empresa nova, mas que crescia assustadoramente. Um negócio que antes de 2020 ninguém suspeitava pudesse ser tão lucrativo. Muito bem instalados no centro da cidade, a equipe fluía numa sintonia admirável.

Mal bateu à porta da diretoria e já entrou a secretária.

– Com licença, Sr. Ademir?

– Pois não, algum problema.

– Não exatamente…

– Pode falar.

– Estamos recebendo muitos pedidos, como o senhor sabe…

– O que é ótimo!

– Sim, claro. Mas como o senhor sempre diz, não podemos descuidar da qualidade…

– É verdade…

– Então, é que acabamos de receber uma ligação do Sr. Allcides… um de nossos clientes mais antigos… e exigentes.

– Sim, claro, o Allcides! Mande um de nossos melhores funcionários.

– Então, é isso. Não esperávamos pelo pedido dele… e nossos melhores estão fora…

– Mas não há ninguém?

– Temos aquele rapaz que começa hoje. Totalmente inexperiente, o William. .. foi o senhor mesmo que o contratou… lembra-se?

– Sim, eu me lembro, claro. Parecia muito bom, mas eu tinha pensado um começo mais tranquilo… justo com o Allcides?!..

– Então,.. é essa a minha preocupação.

Moisés pensou em silêncio por quase um minuto, mas decidiu no impulso.

– Vamos mandar ele mesmo, Renata. Não temos escolha. Só que quero conversar com o garoto antes.

Em minutos, William estava no escritório. Uma camisa branca, de um tecido muito leve, quase transparente, uma calça azul marinho, um sapato discreto, combinando. Uma figura agradável de se ver. Tinha um cabelo fino, cujos fios brincavam no ar. Postura impecável, elegante, mas enigmático, um ar andrógino. Um anjo, mas sem o ar de bondade. Um anjo extremamente profissional.

A conversa durou quase uma hora, e só não foi mais longa porque o tempo urgia. Ninguém queria deixar o senhor Allcides esperando. Seria uma prova de fogo para o jovem, formado em Filosofia, já qualificado para a iniciação científica, mas que disse em entrevista estar animado com o trabalho de acompanhantes, especificamente daquele tipo.

Um carro com motorista particular o levou ao hotel onde se encontraria com Allcides. Anunciou-se na portaria como funcionário da empresa apenas, seguindo à risca as orientações do patrão: “Você não é um indivíduo, rapaz! Lembre-se disso. Nossos clientes não buscam amigos: eles querem interlocutores…”. Pelo telefone, o recepcionista contatou o hóspede:

– Com licença, Senhor Allcides, há uma pessoa aqui enviada pela empresa Solum. Posso autorizá-lo a subir… Ah, sim. Perfeito, Senhor Allcides, como quiser.

– …

– Pode subir. Vigésimo andar, apartamento 2018.

O jovem William saiu com a mesma expressão com que chegara. Nem ansiedade, nem medo, nem apreensão, nem cansaço… Talvez pensasse na sua vida difícil até ali. Sua família simples, seus estudos em escola pública, seu curso no Senai, sua antissociabilidade  e o preço que só ele sabia ter pago por ser como é. Talvez pensasse nas orgias de que participava em suas viagens ocasionais, quando saía do alcance dos olhos conhecidos, talvez… Nunca ninguém jamais saberia o que ele pensava. Nunca, ninguém.

“- Um garoto!?” Foi assim que o cliente recebeu o rapaz. Uma taça de vinho branco na mão, a camisa para fora da calça, gravata afrouxada. Não estava bêbado, mas era um despojamento que denunciava uma tristeza profunda, uma embriaguez emocional típica dos clientes da Solum.

– Na sua solicitação o senhor não fazia exigências quanto à idade, nem mesmo quanto ao sexo…

– Sim, é verdade. Mas uma empresa em ascensão como a Solum se arrisca demais mandando… uma criança como você para me atender. Você sabia que eu sou um dos clientes mais exigentes de vocês? Um dos mais antigos?…

– Sabemos tudo de que precisamos para atender nossos clientes, Senhor Allcides. O senhor, como um dos nossos mais… importantes deveria saber disso… Talvez eu seja o mais indicado? O senhor se incomoda que eu entre?

– Ãh?… claro. Não. Pode entrar…

– Então. Posso ser exatamente o que o senhor procura… Quanto à minha idade, pareço mais jovem, mas já tenho 22.

– Tsc… 22!!!?… Eu tenho…

– 54!…

– É… tenho 54. Uma empresa que aluga pessoas para conversar, como vocês chamam mesmo?…

– Interlocutores.

– Isso, interlocutores… não deveria pensar na adequação dos… interlocutores?

– Senhor Allcides, acho realmente louvável sua preocupação com a empresa, mas até para que o senhor possa aproveitar melhor o seu dinheiro, podíamos conversar sobre outros assuntos, não acha? O senhor se incomoda se eu o acompanhar no vinho também?

-… nã..o, não… claro que não. Pegue uma taça para você.

O rapaz saiu e Allcides se sentou no sofá confortável de um branco rico, enquanto acompanhava cada movimento do rapaz, que o interessava demais. Estava preocupado, na verdade. Sentia-se intimidado, ameaçado, ao mesmo tempo que curioso e desafiado por um tipo que normalmente não despertaria nada daquilo. Escondeu-se por trás da transparência do vinho, mesmo sabendo da suscebilidade que o álcool lhe trazia.

Com a taça de vinho nas mãos, William iniciava sua noite de estreia no trabalho em grande estilo. Sabia que aquele homem esguio e calvo, de olhar forte e triste seria também tragado por sua competência para se esquivar de paixões depois de as provocar.

A conversa brotava com uma naturalidade inesperada. Os dois riam como se aquilo não fosse arranjado, como se não fosse pago. No diálogo, houve sedução e compaixão, houve vários  instantes de cumplicidade.

O tempo extrapolou o combinado, mas ambos sabiam que aquilo podia acontecer. Estava no contrato que as horas a mais teriam acréscimo e isso não seria problema para nenhuma das partes. Quando já amanhecia, porém, Allcides, transgrediu uma das regras e perguntou o nome do acompanhante.

– Cauê.

– Não. Não minta. Diga o seu nome verdadeiro. Sei que você foi orientado para mentir nesses casos…

– Lamento, Allcides. O nome que você pode saber é Cauê.

– É que eu pensei que podíamos ser… amigos… de verdade.

– Desculpe, Allcides, a Solum não aluga amigos. Somos só…

– Interlocutores.

– Éh… interlocutores.

– Então é melhor você ir embora… eu estou com vontade de te dar um abraço. Hoje estou carente e…

– Você tem razão. É melhor eu ir embora… Boa noite, Allcides.

William deixou a taça sobre a mesinha e saiu com a mesma expressão com que chegara. Sem se apressar, sem hesitar… sem se dar conta de que o castanho dos olhos de Allcides o seguia em cada movimento.

Levantou-se, então, como se acompanhasse uma sombra, um fantasma elegante e impassível. Parado, à porta do apartamento, segurando a folha de madeira como se a mordesse com os dedos, chorou uma lágrima só. Fria, de desconsolo, de submissão.

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