SOUL_ART_LIQUID

Conto: Robson Alkmim | Ilustração: Filipe Rocha

Sob a luz de um holofote Milena encarna sua personagem sobre o palco do teatro. Os gestos, ora suaves, ora bruscos, refletem sentimentos de uma mulher que sofre por não poder revelar sua identidade. Sua voz determinada retumba por todo o espaço quase vazio, onde somente algumas outras candidatas na primeira fila se entreolham admiradas pela performance no palco. Duas fileiras atrás, o diretor de barba branca acompanha atento a cada detalhe, e encobre seu sorriso com a mão para que as atrizes não notem sua satisfação.

Milena termina sua brilhante apresentação. Parece cansada; olhos fechados, braços trêmulos, peito arfante. Joga seu cabelo para trás e tenta se equilibrar nas pernas bambas. O diretor pede um intervalo. Milena suspira fundo, anda pesado até uma cadeira na plateia, pega sua bolsa, e sai correndo para uma saída. O diretor a observa e lhe chama, as outras moças se voltam intrigadas, mas Milena dá um empurrão na porta e some na escuridão.

Ela surge na rua ainda com o vestido escuro que usava no palco. Os transeuntes a observam tirar os sapatos de salto alto e correr descalça. Sua beleza luta contra uma feição taciturna sob as luzes amareladas dos postes. Encosta-se num fusca vermelho. Tira um molho de chaves da bolsa, abre a porta, joga os sapatos para dentro, tira um par de tênis da bolsa e o calça. Entra no carro fazendo um estrondo ao fechá-lo. O motor ronca, acelera e dispara pela rua deixando marcas de pneus no asfalto.

Dentro do carro Milena remexe numa sacola no banco ao lado, que contém: uma caixinha, uma garrafa de coca-cola e outra de vodca. Dispensa por várias vezes os avisos de semáforo vermelho. Por duas vezes quase se choca com outros veículos. Desemboca numa estrada. Olha pelo retrovisor São Paulo virar uma massa de luz que diminui até sumir.

Os olhos de Milena não perdiam a estrada, nem os carros ou caminhões que zuniam luminosos na direção contrária. Com o corpo atento, podia se entregar aos seus devaneios.

…seu pai foi embora Milena… não, não volta mais… ele é maluco, artista, grande demais pra mim que sou só uma empregadinha num escritório… sim filha, já tenho namorado, ele é bom, será seu padrasto logo… vamos sair desse apartamento, não quero levar lembranças, nada, nada… você se acostuma, um futuro bem melhor… sou jovem ainda, preciso de um homem que me mostre outra direção, deus nos ajudará, será bom…

Milena liga o rádio. Há um cd. A música começa, cresce, suplica, confidencia, exige intimidade e companhia: Noturnos de Chopin.

Um sobrado, um quintal florido, um cachorro, uma menina brincando com uma boneca muito suja. Um homem gordo chega e puxa a menina pelo braço, ela berra, a boneca cai, o cachorro late. Você tá parecendo um moleque, se vai morar comigo é melhor se comportar! Numa sala uma mulher franzina vê a menina chorando e a abraça. Calma filha, calma. O homem reaparece entornando um copo de cachaça. Essa menina é uma desgraça, olha a sujeira que essa porra fez no chão! A mulher se levanta. Isso é problema meu, a filha é minha… Isso, a filha é sua, imunda como a mãe! O bêbado quebra o copo no chão e parte para cima da mulher, agredindo-a com um tapa no rosto. A menina corre e sobe as escadas. Mãe! Mãe! Papai…

Uma buzina muito alta perturba a atenção de Milena. Um carro veloz ultrapassa o fusca e some em poucos segundos. Seus olhos lacrimejam.

Milena vê um raio no horizonte. Vai chover, pensa; Foda-se. É minha última chuva, diz baixinho. Confere o medidor de combustível. Ainda tem muito… Acelera o carro alcançando as nuvens carregadas sobre a estrada.

Num cemitério, ao pé de um túmulo, Milena coloca flores num vaso… mãe, eu sei que você queria que eu fosse gente grande, que eu tivesse um destino diferente da senhora, mas não sei… olha, eu achei o meu pai, talvez nem se lembre de mim, provavelmente nem sabe que você morreu há alguns anos e nem deve saber do maldito marido que você arrumou a deixou tão doente que… enfim, meu pai nunca entrou em contato… é a vida, as voltas, os ciclos e todas essas miseráveis justificativas para o óbvio: as escolhas… vou me encontrar com ele mãe…

Um raio cai próximo a um morro. Milena tem os olhos tão encharcados quanto a chuva que desaba. Ela tem dificuldade para seguir em frente. Parar. Continuar. Sua mente está confusa. Um perigo para um fim iminente, mas ela não quer que seu ato final seja catastrófico. O ápice de minha vida foi ter encarado o palco sob o olhar assustado daquele homem envelhecido que me reconhecia… Você é Milena?… Sim…. Então vamos começar os testes… Chopin lamenta mais alto ao piano.

Milena avista uma cidadezinha que surge à sua direita. Acha uma entrada, penetra por ruas úmidas e desertas. A solidão tinha um retrato perfeito, quase feliz. Por que sorrio? Tenho vinte anos de idade, uma vida de percalços e abandonos. Poderia ser estrela agora, uma grande atriz, sei que fui perfeita na noite passada. Mas são duas da manhã de um novo dia que não terá fim e…

Avista um hotel bem mixuruca de madeira. Não tem escolha. Para o carro. Olha para entrada encardida e desleixada. Desliga o Chopin. Pega a bolsa e a sacola. Sai do carro sob uma chuva que lhe machuca a cabeça. Seus cabelos escorrem água misturada às lágrimas; pelo menos não daria margem para ninguém julgar seus sentimentos. Nada de pena.

Bate na porta, mas com a chuva lhe atacando entra sem esperar retorno. Uma atendente gordurenta, com o cabelo desgrenhado, assistia sonolenta a um filme numa televisão portátil sob seu balcão. E se assusta com a aparição daquele anjo desconjuntado sacudindo os cabelos como uma louca.

– Tem um quarto?

– Ah, si-sim, tenho um de-de casal e um de-de solteiro.

– Um. Solteiro.

Milena queria se desfazer de todo o imbróglio, sente-se ameaçada, penetrada pelo olhar curioso e carrancudo da senhora. Ela paga com uma nota de cinquenta reais amassada. A mulher levanta a nota contra a luz.

– Nnnão tenho tr-o-co nnnão senhora.

– Não preciso do troco, pode ficar.

A senhora lhe entrega uma chave e Milena sobe sem agradecer. No andar de cima, encontra um quarto tímido e amadeirado, cheirando a mofo. Ela não tranca a porta, acende a luz, joga a bolsa sobre um criado mudo, coloca a sacola sobre uma mesinha com um copo que ela confere para ver sua sujeira contra a luz e o leva para o banheiro.

Após um clarão e um estrondo de um trovão, as luzes se apagam. Merrrde! Milena, que não conhece o lugar, tateia as paredes do banheiro. Acha uma pia, e lava o copo. Volta para o quarto. Bate a canela na cama, geme alto. Acha a vodca, abre-a e enche o copo além da metade, presume. A outra metade completa com refrigerante, o copo transborda sobre a mesa. Xinga a si mesma. Derrama um pouco do líquido no chão. Com as mãos molhadas tenta abrir o frasco com as pílulas. Suas mãos escorregam, ela está trêmula novamente e se lembra do palco, precisa interpretar, não ser mais Milena, último ato…

O frasco se abre e todas as pílulas caem no chão pipocando na penumbra. Alguém ouviu? Talvez. Milena fica parada, tenta identificar se há algum ruído. Nada. As pílulas se espalharam por todo o quarto. Ela se agacha e começa a recolher as que estão por perto e aparentemente secas. Há uma goteira no telhado, Milena percebe uma intensa umidade sobre os tacos. Mas que comédia isso tá virando!

Junta algumas pílulas, não sabe precisar quantas. Coloca na boca e sente um amargo atravessando sua língua. Engole o conteúdo do copo. Tosse engasgada. Soca o peito e melhora. Aproxima-se da janela. A escuridão é intensa. Os raios iluminam a cidadezinha acanhada e feia, segundo Milena, a paisagem derradeira. Mas está feito e será aqui!

– Ha, ha! Milena solitária. A jovem abandonada. Ha, ha! A covarde que não se declarou diante do homem por quem sempre esperou. Hahaha! – Milena gira e senta-se na cama. Após alguns minutos, o seu corpo amolece. Mãe, pai, padastro, teatro, diretor, estrada, as imagens se embaralham em sua cabeça com o pesado barulho da chuva. Principia tirar a roupa, mas não consegue se levantar. Deita na cama e adormece. Com o copo ainda na mão, o resto do líquido derrama sobre o colchão.

————–

 

Na manhã seguinte o céu está azulado, o sol brilha intenso. A cidadezinha se movimenta em sua rotina vagarosa. No quarto, um toque de celular, o som agudo é repetido diversas vezes. Um copo cai no chão e se quebra. Milena dá um salto da cama, um pouco tonta. O vestido desce do seu corpo e se embaralha entre as pernas. Ela pega o celular da bolsa.

– Aalôu…

– Eu queria falar com a Milena Soarez, por favor.

Milena leva um choque, reconhece a voz, sua memória volta a funcionar. Ela se vira para o quarto e vê a cena da noite anterior. O copo quebrado. O colchão manchado. O chão úmido com as várias pílulas brancas amolecidas. Sente o calor do sol tocando suas pernas. Não há dúvidas, ainda vive.

– Alô, Milena, você foi escolhida para ser a protagonista da minha peça, precisa passar no teatro amanhã, você me ouve?

Milena suspira fundo.

– Pai?

O silêncio na linha permanece por vários segundos, uma eternidade para Milena, tinha medo da resposta. Ouve a respiração de alguém pego de surpresa e que precisa responder alguma coisa.

– Sim…

Milena começa a derramar lágrimas. Ela escolheu sair por um caminho, mas acabava de sair, ou melhor, entrar por um outro inimaginável. Passa a mão pela testa, aceita a situação. Acho que minha mãe aceitará minha decisão…

– Sim, eu irei.

– Filha, eu…

– Pai, amanhã.

– Amanhã…

A linha cai. A bateria acaba. Milena beija o celular. Tira o vestido das pernas. Vai para perto da janela e deixa o sol queimar sua pele, mesmo com o frio na barriga. Deixa o corpo cair sobre a cama e adormece com um sorriso besta no rosto.

 

 

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