Itamar Assunção é um compositor e intérprete da cidade. A vida da cidade é central em sua obra e aparece na escolha dos timbres, construção dos arranjos, entoações vocais (que são muitas vezes a mimese de situações típicas da cidade) e no tema propriamente dito de suas canções.
Mesmo em sua vestimenta, fruto de sua persona, o urbano está presente. Itamar construiu ao longo dos anos uma persona artística que possuía em si mesmo o kitsch típico do urbano. Kitsch típico de um espaço social de diversidade cultural e que possui tal diversidade justamente por ser uma local de trocas econômicas, troca de mercadorias por produtos e de mão-de-obra por salários.
Uma vez que a a arte é a criação de coisas de uma inutilidade necessária, ou mesmo de uma necessidade inútil, Itamar produzia sua arte a partir dos elementos que a vida lhe apresentava, e dava voz e vida por meio dessa voz a esses personagens. É curioso notar que embora ele assumisse as diversas personalidades do meio urbano em sua obra, gesto já bastante comum na poesia da transição do século XIX para o XX, como, por exemplo, o poema The Waste Land de T.S Eliot, ou mesmo, Leaves of Grass de Walt Whitman, onde não é apenas uma voz que enuncia as maravilhas e as desgraças de ser um ser humano na era da modernidade, em momento algum ele narra histórias verídicas. Não se trata de uma arte documental, militante ou mesmo um mero retrato de um acontecimento específico. Nesse sentido tomo as palavras de Harold Osborne para ilustrar essa ideia:
Hoje em dia, o que mais comumente, posto que vagamente, se entende por “imaginação” (…) é o poder de modelar a experiência em alguma coisa nova, criar situações fictícias e, por um sentimento compreensivo, colocar- se no lugar de outrem.
Osborne segue diferenciando o que é imaginação no sentido moderno e no sentido clássico.
(…) a antiguidade clássica não conhecia teoria alguma da imaginação. Nem viam os antigos nenhuma conexão particularmente estreita entre os poderes imaginativos e a produção artística (…) Platão menciona a imaginação principalmente ligada à sua teoria do conhecimento e classifica- a como a mais baixa das faculdades.
Essa diferenciação situa a arte de Itamar em um mundo específico, o que significa que: embora pudéssemos fazer analogias comparando Itamar e seu repertório com os trovadores que surgiram a partir do século XI na Idade Média, ou mesmo os poetas épicos, como Homero, e ainda, qualquer poeta que se acompanhasse por sua lira como no mito de Orfeu, tais comparações se preocupam apenas com a forma do que é apresentado, e embora a música de Itamar, assim como de qualquer cancionista, derive em certa medida dos trovadores, ou mesmo da poesia épica, essa derivação está em apenas um parte do objeto artístico, em um fragmento.
A poesia épica tinha cunho didático e moralizante, a música trovadoresca tanto dos menestréis quando dos trovadores da cavalaria quando se desvencilha da arte secular, mantém, ou assume, uma função idealizadora de mundo e tinha uma função social nas cortes, ou seja, não havia espaço para a imaginação. Albert Hauser chega mesmo a afirmar que a música trovadoresca de meados do século XII e XIII seguia uma forma onde cortejar as damas era uma demonstração de respeito de modo que todas as “canções” deveriam tratar do tema do mesmo modo e com o mesmo intuito. Certamente a dinâmica não era tão estática uma vez que o próprio Hauser apresenta contrapontos, mas o fato é que essa arte possuía uma função especifica na ampla maioria dos casos, e por possuir uma função não permitia muita liberdade nas suas formar de expressão e materialização.
Desse modo temos que entender quais tipos de analogias podemos fazer e com quem ou o quê. O uso das analogias é fundamental para compreendermos a arte feita hoje e sua relação com a arte feita outrora, mas se a música de Itamar não pode ser comparada com as narrativas épicas acompanhadas por suas liras, ou mesmo, por composições trovadorescas, com quem poderíamos compará-lo, e qual o sentido da discussão sobre a imaginação feita acima?
Compreender que a imaginação é uma aquisição recente da história da humanidade, e, portanto, da história da arte é fundamental porque tem-se erroneamente que a arte é e sempre foi o fluxo contínuo da imaginação de uma mente privilegiada. Isso é equivocado em todos os sentidos. Primeiro: a imaginação na arte é valorizada após o mundo burguês se consolidar. Segundo: o mito do gênio é uma construção do mesmo período. Antes desse período, que por sua vez foi consolidado com a Revolução Francesa, mas que já apresentava indícios e ia se constituindo junto com a circulação de mercadorias e moedas a partir do século XI, que por sua vez favoreceu o fim dos monastérios como polos de produção de conhecimento e centralização da arte tanto no sentido temático quanto da forma e conteúdo, já que tal circulação criou uma aglomeração de pessoas em centros em processo de urbanização que iriam dar materialidade às cidades na acepção moderna, a arte tinha uma função específica. No período imediatamente anterior a função da arte era reforçar os valores e mitos cristãos. Sendo assim não havia espaço para a imaginação. O artista era alguém que detinha a técnica de um ofício e o uso desse ofício era específico.
Itamar embora fale de seu mundo não faz propaganda de absolutamente nada, não defende postura de absolutamente ninguém e embora sua canção fale de uma realidade difícil não é em momento algum um manifesto ou panfleto político (aí reside o que há de melhor em sua produção). Por exemplo: Na canção “Nego Dito” ele cria um mundo onde narra a história de um indivíduo em específico, um indivíduo perigoso, mau-caráter, violento e sem nenhuma crise de consciência por conta disso, mas embora você aprecie a história é sabido de todos que o Itamar Homem não é o Nego Dito, ainda que existam muitos negos ditos no Brasil e no mundo. Itamar também não propõe que nos unamos para acabar com os negos ditos do mundo e que lutemos por um mundo melhor, ou que formulemos uma gangue de negos ditos. Não há carga moralizante.
Itamar jamais cantaria isso em uma corte da Idade Média ou na Antiguidade Clássica, simplesmente porque as pessoas dessas épocas não seriam capazes de diferenciar o Itamar cantor, o Itamar personagem ou o Itamar real. Itamar seria preso ou condenado pelos crimes. Michael Hamburguer diferencia a figura do “eu lírico” com o “eu empírico”, essa distinção é fundamental para compreender a produção artística de todo tempo, mas é importantíssima para compreendermos a produção moderna pelos motivos citados.
Regina Machado afirma sobre a canção Nego Dito o seguinte:
Nego Dito resgata a figura do malandro tão característica da canção popular brasileira, principalmente após os anos 1930.
Em realidade a canção resgata, além da figura do malandro, algo mais antigo.
A obra de Itamar, e em especial a canção Nego Dito só pode resgatar algo que seja do mundo moderno segundo tudo que afirmamos, mas o que ou quem seria? Seria a obra de dois poetas fundamentais sem os quais não conseguiríamos entender o que Itamar produziu no século XX, ou como essa produção pôde se materializar. Um dos poetas data do século XV e o outro de meados do século XIX. O primeiro é o poeta François Villon e o segundo o poeta Charles Baudelaire.
Villon foi o primeiro poeta a cantar em suas baladas o mundo erótico, feio e perigoso que a Europa era em meados do século XV. Fez isso com humor e sem a carga moralizante dos poetas que o precederam. Em realidade ele era a própria materialização do nego dito, mesmo sendo branco. Teve uma vida conturbada com sucessivos registros de prisões por furtos e roubos, até que simplesmente desapareceu dos registros, os historiadores levantam a hipótese de assassinato já que sua morte não foi documentada. Villon nos deixou duas obras: O Testamento e um conjunto de baladas.
Baudelaire é o famoso autor do livro chamado As Flores do Mal, que apresenta o mundo cru perante os olhos, um mundo cru e moderno. Baudelaire divide com Whitman o título de primeiros poetas modernos no sentido estrito.
Porque então podemos comparar Itamar com Villon e Baudelaire? Porque são “poetas” modernos, urbanos, que apresentam o mundo da cidade sem idealizações e ainda assim não usam sua arte para militar por um lado ou ideal. Villon, se desconsiderarmos questões que esse trabalho não pode resolver por conta de extensão, era um criminoso do século XV, Baudelaire um membro de um aristocracia decadente que esteve muito próximo da revolução de 1848 e muito crítico ao sistema político francês e Itamar um homem que pelo pouco apelo mercadológico de sua obra no período em que atuou, e por certo romantismo da sua função como artista, foi confinado a anos de ostracismo. Esse romantismo tardio de Itamar o torna altamente moderno.
Como todo bom moderno ele cometeu sérios erros de análise de onde sua obra se inseriria, de como desenvolver sua obra e como trabalhá-la no mundo do capitalismo já altamente desenvolvido. Esses erros reforçam o romantismo tardio de Itamar, como reforçam o romantismo tardio de Baudelaire. Baudelaire superou o conteúdo, mas não a forma da expressão poética, Itamar criou um ambiente performático com forte potencial de superação das estruturas da canção, no entanto muito do que propôs acabou não sendo desenvolvido por ele mesmo, talvez por deficiências técnicas, o que o fez ter uma produção oscilante que variava entre o pop banal e o excêntrico incompreensível, sendo que o melhor de sua obra se situa exatamente entre esses extremos. Villon superou o conteúdo mas não as necessidades da vida ordinária do pré-capitalista, mas, sobre as necessidades da vida ordinária: essas ninguém supera. Afinal… Ainda somos modernos.
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