Se, como argumentei em meu último texto, a astronomia pode exercer um papel libertador para o indivíduo, do ponto de vista de sua consciência livre e autônoma, imagine o poder que não teria a música ela mesma, talvez a forma de arte mais popular e aquela que não necessita de museus, nem de cd players, toca discos ou rádio. Mas como pode haver uma forma de expressão artística que nem de um canvas, nem de meio radiofônico ou eletrônico algum precisa?
Ora, a voz humana é suficiente para que se tenha música, principalmente num contexto a que eu gostaria de chamar a atenção: a música dos escravos trazidos à força para o continente americano. Eu poderia começar mencionando Bob Marley e Redemption Song, e é isso o que eu vou fazer.
“Tudo que eu sempre tive foram canções de redenção”
Duas indicações do caminho a percorrer
Este texto, posto à sua frente, é constituído de dois momentos.
Em um primeiro momento, o foco será a figura do cantor folclórico (ou folk) Pete Seeger e o quanto ele se dedicou a divulgar o cancioneiro dos anônimos escravos, que sob o jugo do homem branco sofreram a maior das opressões: o cerceamento da liberdade e o não reconhecimento de si mesmos como pessoas ou como seres humanos iguais a quaisquer outros.
Antes, contudo, de mencionar a segunda parte, seria interessante entender por que o trabalho de músicos, artistas em geral e intelectuais, ou mesmo a conscientização de cidadãos comuns, é tão importante para que se entenda o que é o racismo, como ele funciona, e o quão vil e arraigado ele ainda hoje é, tanto no Brasil, como nos Estados Unidos (e mesmo no resto do mundo). Para isso, tomarei como exemplo uma posição pseudocientífica (poligenismo), usada com finalidades ideológicas, vexaminosas e desumanas.
Tento explicar a seguir.
Louis Agassiz, biólogo e zoólogo, professor de Harvard no século XIX aviltava o afrodescente
Durante todo o século XIX, biólogos como Louis Agassiz sustentaram a tese de que afrodescendentes nem da raça humana faziam parte! Essa tese ficou famosa pelo nome de poligenismo. E isso num dos lugares mais “iluminados e ilustrados” da época: o topo do nordeste americano, a Nova Inglaterra (mais precisamente, Massachusetts). E no que consistia esse tal de poligenismo? Em suma:
[…] [o] poligenismo é a hipótese segundo a qual a humanidade não tem uma origem comum, sendo que os diversos grupos humanos pré-históricos ou as supostas raças da humanidade atual descendem de espécies distintas. (O poligenismo, corrente difundida principalmente no século XIX, tornou-se obsoleto com a aceitação da teoria darwiniana da evolução.)
Abraham Lincoln, John F. Kennedy, Martin Luther King e Bobby Kennedy
Em um segundo momento, começarei mencionando de passagem a figura de Abraham Lincoln, que lutou para que a União fosse mantida, embora os estados confederados e em secessão, cheios de plantations de tabaco e algodão, não quisessem o fim definitivo da escravatura, ou seja, do comércio e da manutenção “posseira” de seres humanos aviltados e destituídos de sua própria humanidade.
Abraham Lincoln, porém, será apenas um dos constituintes de um quarteto, que numa canção de uma figura estranha como a do cantor Dion (logo acima, aperte o play!), sintetizou a luta pela igualdade entre os homens. A segunda figura a aparecer será a de John F. Kennedy (JFK), a terceira a de Martin Luther King e a quarta a de Bobby Kennedy. Por quê? Ora, porque eles, mesmo que, se se quiser, corruptos, foram homens que lutaram por toda sua vida pela dignidade humana e, em alguma medida, foram assassinados por isso. O caso de Lincoln é sintomático: foi alvejado por um simpatizante dos confederados insatisfeito com o resultado da vitória da União contra a “independência” ou secessão dos estados confederados do sul (escravistas e economicamente atrasados).
Black Lives Matter e a herança da posição de Malcolm X
Pete Seeger e uma geração de protestos a favor dos direitos civis dos afrodescendentes
Seria interessante conseguir usar aqui os próprios registros históricos de quem compôs as canções cantando-as. Infelizmente, porém, quem temos à disposição, neste caso, é um homem branco, um daqueles que se engajou na luta pelos direitos civis da minoria mais aviltada na história.
Comecemos, por isso, com um certo hit, bem mais sutil que o Fuck the Police! (um dos melhores e mais conhecidos raps que se inflama quanto ao abuso e a violência policial praticados contra os afrodescendentes).
Antes de seguir, porém, como esse texto não trata de rap (rhythm and poetry), nem de hip hop, nem de street art (grafitti), gostaria apenas de deixar anotado aqui, de passagem, que uma das formas de arte mais interessantes nos últimos 30 anos é justamente esta, contida na abreviatura Ritmo & Poesia. Deixo, porém, aos que realmente conhecem o assunto dele falar.
“Eu não tenho medo da sua cadeia, eu quero minha liberdade e quero agora”
Nosso cantor folk, Pete Seeger, não foi nenhum Bob Dylan, mas em certo sentido sua figura conquistou uma representatividade muito maior no que diz respeito à luta contra um estado de coisas vil e desumano (a segregação racial).
Reuniam-se em igrejas e planejaram um protesto silencioso, em que em tese a polícia nada poderia fazer. Só que diante da reação raivosa da polícia fascistóide, como narra a própria música, os manifestantes começavam a dançar e a cantar! E eram presos, na prática, por desobediência civil e por perturbar a ordem pública.
Polícia patética e irracional, não? Como essa sociedade pode se dar de maneira harmônica se aqueles que deveriam nos proteger são aqueles que justamente nos atacam? No caso da comunidade afro-americana nos Estados Unidos a situação é bem pior. A polícia apenas atira para matar, sem levar em consideração o aspecto humano daquele contra quem se volta. É claro que ser policial é, sim, arriscar a vida pela sociedade, mas quem faz essa difícil escolha são eles, não são? Então falta preparo e falta a noção de que o aparato policial não pode, nem deve, sob hipótese alguma, ter qualquer outra finalidade que não seja proteger o cidadão, não o atacando e desrespeitando os direitos básicos de todo e qualquer indivíduo.
O que podemos aprender para que um outro mundo menos injusto seja possível?
É isso que aprendo com essas músicas, de espírito e coração leves e serenos. Há qualquer coisa de fundamentalmente errado na maneira como os policiais, no mais das vezes, se comportam no Brasil e também nos Estados Unidos, como se fossem pequenos tiranos todo poderosos.
A obrigação de todo cidadão é militar para que a polícia seja mais humana, mais preparada e trabalhe não para si mesma ou para a edificação de seu próprio ego, e sim para o benefício e a proteção da sociedade e dos cidadãos, estejam eles onde estiverem, sejam eles quem e como forem.
Dion e Burt Bacharach numa edição audiovisual de Tom Clay
Encerrando, gostaria apenas que considerassem um vídeo um tanto kitsch e démodé produzido por um DJ, Tom Clay, em 1971, em que junto à canção acima mencionada, Abraham, John and Martin — porém, esquecendo-se do primeiro (Abraham) e focando-se nos três assassinatos mais famosos daquela época: o de John F. Kennedy, o de Martin Luther King e o de Bobby Kennedy —, acrescenta também a canção de Burt Bacharach, What the World Needs Now Is Love.
Piegas, não? Pouco importa. Interessa-me a mensagem e o que esteve em jogo ali. Um enorme trauma não só nacional para os Estados Unidos mas também para todo e qualquer cidadão do mundo que desejava apenas um mundo menos cruel e injusto.
“Alguns homens veem as coisas como elas são e dizem: por quê? Eu sonho com coisas que nunca foram e digo: por que não?”
Sinceramente, meu desejo seria traduzir este vídeo e falar a seu respeito. Seria necessário falar sobre Burt Bacharach e o que ele significou para a música, e também o quão significativa e atual é a sua canção What the World Needs Now Is Love, que nada tem a ver com amor romântico, e sim com amor como uma espécie de baliza de ação e comportamento no mundo, na rua, na tal Babilônia. Só que não há mais espaço, nem sequer para traduzir as palavras de Ted Kennedy no funeral de seu irmão. Talvez no futuro.
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