Muito se fala sobre a dificuldade de se popularizar o cinema de arte, sobretudo no Brasil. A bilheteria de filmes aclamados pela crítica e por festivais internacionais é matéria de muita discussão da crítica de jornal e dos realizadores brasileiros.  Para além da complexidade que a discussão exige, são pouquíssimos os exemplos de filmes, não só no Brasil, que conseguem encontrar um ponto de equilíbrio entre popularidade e profundidade.

[dropcap size=big]A[/dropcap] impressão que dá é a de que se tratam de duas grandezas inversamente proporcionais: à medida que uma obra aborda questões de maneira mais profunda, menos popular e acessível ela se torna. Essa lógica também serve ao contrário, já que os sucessos de bilheteria geralmente cumprem um determinado padrão de não propor discussões ou reflexões mais aprofundadas sobre os temas que abordam. Para amenizar a problemática, categoriza-se os filmes em cinema de arte e cinema de entretenimento, como se o selo de “cinema de arte” livrasse uma obra da responsabilidade de alcançar o grande público, assim como se a categoria “filme de entretenimento” livrasse uma obra de uma crítica mais rigorosa.

Na produção cubana “Conduta” (2014), Ernesto Daranas Serrano pacifica essas contradições e ainda traz o incremento do belo, ao apresentar uma obra extremamente popular, mas em nenhum momento apelativa; profunda, mas nem um pouco obscura, além de assombrosamente delicada.

Chala é um garoto de 11 anos que vive na periferia de Havana, capital de Cuba. Em meio a um cenário de pobreza, violência e criminalidade, o garoto tenta, nas rinhas de cães e pombo, sustentar a casa onde mora com a mãe, dependente química de álcool e drogas. Simultaneamente, luta para permanecer na escola e encontra em “Carmela”, a professora, o afeto maternal que lhe falta. Essas questões enlaçam o conflito central do personagem, erguido principalmente na luta entre o adulto contra a criança. De um lado, temos um menino de 11 anos que assume as responsabilidades financeiras da casa e inverte papéis com a mãe, de quem praticamente cuida; de outro, a inocência o leva a comportamentos infantis com relação a coisas cotidianas. Chala é, portanto, um menino precoce, ao mesmo tempo que é um adulto infantil; uma dualidade que adorna a psicologia desse personagem e o eleva, traz complexidade para a discussão sobre “delinquência juvenil” e expõe as contradições a respeito do tema.

Um menor “delinquente” e uma professora “heroica”, a princípio podem parecer personagens de um típico clichê, e talvez isso dê ao filme o seu forte apelo popular. No entanto, a trama está longe do lugar comum. No filme, a escola assume o papel de lugar alegórico das contradições da pitoresca Cuba, 60 anos após a revolução de Che e Fidel Castro.

Não é preciso anteceder nenhuma informação para compreender que, em Cuba, a educação é levada a sério. O próprio filme já oferece essa compreensão e é dentro deste contexto que se dão os conflitos entre legalidade versus justiça, expostos pelo filme. Carmela aparece como a heroína da justiça, que denuncia as falhas da legalidade até mesmo no que se propõe o próprio regime: no caso, garantir educação de qualidade a todos. A legalidade surge como barreira neste sentido, quando se descobre irregularidade na matrícula de Yene, uma aluna palestina residente em Cuba, e ela é impedida de frequentar as aulas. Além disso, seu pai, um vendedor ambulante de verduras, é preso.

“Este homem não é um criminoso, e sim um pobre que se mata de trabalhar”, diz a professora aos policiais que o detêm.

Carmela encobre os delitos dos alunos, confia na sua capacidade de convertê-los em bons cidadãos cubanos, e é prestigiada pela maioria dos colegas. Entretanto, a gestão compreende que a situação de Chala fica insustentável e o caso é levado para uma espécie de conselho julgador, que irá decidir por seu afastamento; instaura-se um clima de tensão entre a gestão e a professora, em uma das cenas mais marcantes do filme: Carmela, na tentativa de embasar a sua defesa, afirma que “leciona há muito tempo na escola”, a gestora responde dizendo que “talvez seja tempo demais” – “É menos tempo do que os que governam este país, isso também lhe parece mal?”

Na forma o filme é cirúrgico tanto quanto no conteúdo, com a América Latina exposta em planos, cores e ritmo. O estilo de Daranas estabelece um diálogo sensível entre a tradição latino americana e os novos paradigmas da forma cinematográfica. Nesse ponto, o autor também é conciliador, ao apresentar uma narrativa instigante mesmo para um formato mais longo, introduzindo pequenos arcos dramáticos dentro da narrativa central e eliminando a barriga, de modo que todo acontecimento se torna imprescindível na construção narrativa da obra: tudo é, ao mesmo tempo, cotidiano e épico, ou seja, nada está por acaso no filme. Não seria ousado dizer que este novo paradigma, tanto no aspecto imagético quanto no aspecto da construção narrativa, são elementos recorrentes na cinematografia latino-americana contemporânea, selada por Alfonso Cuáron em Roma (2016).

A fotografia é sóbria, bela e muito cuidadosa; nenhum plano no filme passa despercebido no que diz respeito a composição, enquadramento, movimento e cor. Talvez isso possa ser uma deficiência a ser apontada: a preocupação técnica em compor imagens absolutamente harmônicas talvez possa sobrepor a funcionalidade artística da fotografia em favor da estória. Neste caso, os artifícios poderiam ser mais usados não apenas na busca obsessiva pelo plano perfeito, mas o feio também poderia aparecer como elemento de composição artística do enredo, sobretudo nos momentos onde a violência é a questão levantada.

De todo modo, existe frescor em vários aspectos do cinema de Ernesto Daranas Serrano, como por exemplo na jornada do autor para a concepção de uma obra de relação íntima entre as grandes questões da humanidade e a linguagem popular. Nesse aspecto, a obra serve como parâmetro para debater as contradições entre autoralidade x qualidade x acessibilidade, além de mostrar que é possível equalizar essas contradições sem que se prejudique um elemento em detrimento de outro.

A maneira sagaz como são expostas as contradições, tanto do regime político quanto do próprio ser humano, causa a fácil identificação das personas, criando grande vocação popular para “Conducta”. Apesar do filme estar longe de ser o que se chama de “sucesso de bilheteria”, o que seria uma outra discussão, a predisposição popular está revelada na estrutura da obra e isso, para a arte, já é muita coisa.

*A obra está disponível na plataforma MUBI.

Quer receber nosso conteúdo?
[popup_anything id="11217"]