O farol quebrado no cruzamento das ruas Brigadeiro Galvão com a Conselheiro Brotero, ali aos pés da Barra Funda, no limite do centro com a Zona Oeste de São Paulo dava um tom dramático à tarde de outono que caía junto a um Sol ensimesmado. Ali, numa das pontas desta encruzilhada, as buzinas atônitas, xingamentos diversos, eminência constante de um acidente, esperava por Thiago, filho de Dona Tati, a matriarca desse botequinho.

Fotos | Gabriel Alexandre

[dropcap size=big]C[/dropcap]lara Nunes e Chico davam o tom na vitrola. Suas vozes ecoavam entres as mesas do Boteco, ainda vazio — muito diferente, inclusive, da maioria das noites que se apinham por lá. Sábado, dia de feijoada, dois funcionários a menos; apesar do movimento tímido, havia espaço pra uma correria corriqueira, típica de quem dá atenção dobrada a cada um dos seus clientes. Conciliando as mesas, os clientes, a feijoada e Mathuca, seu filho, Thiago me deu, ao melhor estilo dos botecos, entre as quatro quinas duma mesa, um dedo de prosa sobre as histórias do Boteco da Dona Tati.

Enquanto ela chefiava, como ninguém, a produção dos delírios da baixa gastronomia, fazendo aparições muito pontuais, vez ou outra, eu proseava com seu filho, um “olho no gato e outro no peixe” — ou no porco, sabe-se lá. O Boteco da Dona Tati, queira você saber, é um desses bares da cidade que abrigam em sua essência um pedacinho do Brasil real. O Brasil dos encontros, da boa música, da simplicidade, da comida, dos sorrisos e das tradições ancestrais. Sem dúvida, um reduto, um templo entre os templos.

A MATRIARCA

Nascida em 1956 no interior de São Paulo, filha da baiana Dona Geni, comerciante que veio aos 8 anos tentar a vida nos interiores de SP, Dona Tati Alves Martins, tão jovem quanto, aos 13 anos correu também pra capital paulista buscando suas oportunidades, deixando a vida sertaneja de roçado pra trás. Menina, negra e interiorana, na pauliceia experimentou a sorte de uma subvida e seus subempregos, trabalhando inicialmente como empregada doméstica. Após um pequeno hiato, nas vésperas de seu noivado, Tati reencontrou sua mãe na cidade cinza, próximo a data de seu casamento. Do matrimônio, nasceram Ricardo e Thiago. Oito meses depois, a separação.

À época, Dona Geni dera a Tati um bar, o seu primeiro em São Paulo, nos arredores do bairro da Liberdade, no centro. Depois de enfrentar algumas dificuldades, o comércio fechou e Dona Tati foi “trabalhar fora”, como me disse Thiago, de alguma forma comprovando que “dentro”, no caso, era o lugar de onde ela e sua sina nunca deveriam ter saído. As coisas são como são. E assim, nas idas e vindas dessas andanças, há 18 anos, no apogeu no nascimento dos anos 2000, um outro rebento desponta: O ainda desconhecido Boteco da Dona Tati.

O BOTEQUINHO

Nas imediações dos Campos Elíseos, onde morava Dona Geni, no encontro das Alamedas Eduardo Prado e Barão de Piracicaba, era aberto, a partir do “feeling comercial da família”, como nos diz Thiago, um modesto boteco que se destinava a apenas servir comida para os trabalhadores das empresas da região, não mais que isso. Após praticamente dez anos ininterruptos de trabalho, Dona Tati resolveu diminuir o ritmo e passou a abrir as portas de metal do boteco somente a noite, conferindo ao espaço aquele famigerado ar de boteco de bairro, onde os mais velhos se reúnem pra tomar uma carraspana, brincar o carteado e bater pedras no jogo do dominó. Nessa batida, mais alguns anos se passaram até que, em 2016, uma fatalidade veio a ocorrer: falece seu filho, o irmão de Thiago.

“Minha mãe entrou numa depressão fortíssima, em maio de 2016, e eu tinha acabado de sair do trabalho, há um mês. Foi bem difícil segurar.”

Assim relata Thiago, que completa: “Aí eu resolvi juntar forças com Dona Tati pra dar uma levantada no botequinho, porque já estava fraco, sem movimento. Cheguei a vender a minha bicicleta e a do meu irmão pra gente pagar os aluguéis do bar etc”.

RECOMEÇO

Pensando que todo fim representa também, de alguma maneira, um começo, Thiago valeu-se da sua curiosidade pra começar a pesquisar sobre harmonizações e, nestas pesquisas, descobriu os hambúrgueres artesanais, queridos por conta da praticidade e agilidade que as cidades grandes ditam. “Foi um bagulho foda, eu descolei um esquema massa pra construir um cardápio de hambúrgueres artesanais”. Thiago relembra que a culinária sempre esteve presente em sua família, e cita sua tia Áurea, excelente cozinheira, seu tio Claudinei, que é chefe de cozinha e, obviamente, dua mãe, Dona Tati, que “tem mãos de fada”. Veio a calhar! Os hambúrgueres caíram nas graças dos funcionários da Porto Seguro, empresa dominante na região dos Campos Elíseos. O estilo de vida emergente de quem vem das periferias, trabalha e ascende casou perfeitamente com a, digamos, “gourmetização” do cardápio do Boteco da Dona Tati. As coisas voltaram a entrar nos eixos.

De toda forma, Dona Tati, apesar da guinada do botequinho, se encontrava um tanto cansada por conta de todas as lutas e percas que enfrentara ao longo dos anos e, sem pestanejar, deu o ultimato a Thiago: Você vai ter que me ajudar. “Eu até tentei conciliar os freelas de design e os hambúrgueres. Como eu não consegui, o boteco tava dando certo, a gente começou a tocar. Isso foi em novembro de 2016”. O designer deixou de lado a sua profissão pra seguir os rumos ancestrais de sua família no comércio. Gradativamente as coisas foram girando, voltando pro lugar e, em alguns casos, se apresentando novamente, como fossem velhos amigos que se reencontram. Foi exatamente assim com o samba, que “sempre namorou o botequinho”, mas nunca teve uma participação efetiva na programação da casa, a não ser por uma breve tentativa, anos atrás, onde o Bloco Guerreiros de Jorge, da Barra Funda, se apresentou durante alguns meses numa feijoada mensal que era servida por lá, trazendo convidados que, mais tarde, Thiago reencontraria e traria para mais perto de si. Durante algum tempo, também, e dessa quem faz questão de lembrar é a própria Dona Tati, rolava MPB com o músico Juliano Juba, velho conhecido das noites paulistanas e cariocas.

VAI, MEU SAMBA

Porque não trazer o samba pro boteco? Foi partindo deste questionamento que Thiago estreitar laços com os artistas que já conhecia por conta de suas andanças na noite de São Paulo. De maneira totalmente despretensiosa, ele conta que, inicialmente, uma roda de samba rolava às sextas, mas a coisa demorou pra engrenar. “Muitas vezes tomamos preju, de ter que pagar o grupo e não ter dinheiro em caixa. Mas a gente sempre respeitou quem ia tocar, sendo amigo ou não”. Porém, de pouquinho em pouquinho, com paciência e sabedoria, o samba foi criando jeito no Boteco da Dona Tati e se firmando na programação. A primeira roda de samba a rolar oficialmente no botequinho foi o “Samba Nosso”, que era encabeçado pelas cantoras Dandara Nilé e Paula Pretta. Dalí a 4 meses, a coisa engrenara de verdade e, enfim, começara a tomar proporções nunca antes imaginadas.

Logo depois disso, por intermédio da musicista Helena Rojoo grupo Quarteto a Ferro e Fogo começou a se apresentar na casa e, com ele, o  Grupo Sambadela, “a roda que impulsionou o botequinho”. Com a popularização do Boteco da Dona Tati por conta do sucesso do Sambadela, uma característica se assemelhou e acabou por se confundir com o próprio espaço, característica essa que, aos poucos, Thiago foi tentando desvincular. O botequinho ficou conhecido como sendo um ambiente em que se podia ir para ouvir uma “roda de samba só de mulheres”. Neste movimento, vieram também os grupos Samba de Dandara, Sambadas, Canto de Malungas, o festival Samba Da Elis e tantos outros projetos e grupos protagonizados por mulheres. Mas não era isso, necessariamente, o que Thiago queria.

“Eu não queria que alguém pensasse, ‘ah, vamos na Dona Tati ouvir uma roda de samba de mulheres’, mas sim, ‘vamos na Dona Tati ouvir uma roda de samba boa’, era isso.”

Isso, claro, “foi massa pra caramba”, como o designer ressalta, mas a ideia era justamente não afunilar, mas sim, abranger. Ele relata que, a respeito disso, conversou bastante com Rosangela Araújo, a Mestra Janja do Grupo N’Zinga de Capoeira AngolaEla, referência na capoeiragem, na academia e no feminismo, disse a ele o que precisava ser dito: “você não precisa dividir nem criar um nicho”. E foi a partir desse momento que Thiago buscou diversificar a programação musical do botequinho, não esquecendo, lógico, desses grupos encabeçados por mulheres que impulsionaram o espaço, mas trazendo novas vozes que somam junto ao cenário musical do samba de São Paulo.

O foco maior, vale dizer, foi em dar espaço aos grupos periféricos que, apesar de terem sua história e público cativo nos cantões da cidade, estão fora do circuito do samba no centro da capital paulista. “Porque não trazer esses grupos da periferia? São rodas de samba lindíssimas, que não perdem nada pra ninguém. A gente começou esse trabalho. A música no boteco foi ganhando uma característica de diversidade, democracia”. E assim, tomadas as devidas proporções, o samba contribuiu para a disseminação da imagem do Boteco da Dona Tati e, pouco a pouco, o antigo espaço dos Campos Elíseos, que por quase 20 anos abrigou as comidas de Dona Tati, os senhores do bairro, os boêmios e boêmias da noite, foi ficando pequeno demais pra aquilo tudo.

Era hora de mudar.

TUDO NOVO DE NOVO

Se esquivando de uma vizinhança que já não mais estava contente com a proporção que as noites no Boteco da Dona Tati ganharam e fugindo de um “público predatório”, uma galera que “não respeitava o que estava sendo feito culturalmente ali”, foi que Thiago e Dona Tati decidiram deixar aquele pedaço da história para trás para começarem a reescrever um novo momento. Ele lembra que o assunto entrou em voga quando o Batalhão da Vagabundagem trouxe o bamba Seu Dadinho, da Velha Guarda do Camisa Verde e Branco, como convidado, isso no antigo endereço, e os dois começaram a conversar e se aproximar, Thiago sempre pedindo conselhos ao mestre e os ouvindo com atenção. “Na verdade não só o seu Dadinho, mas engraçado que outras figuras do Camisa passaram a frequentar o boteco”, ele rememora para, na sequência, fazer a ligação com o bairro da Barra Funda, berço do A.C.S.E.S.M Camisa Verde e Braco.

Por conta dessa influência e, pra não ir para muito distante de onde estavam, ele e Dona Tati começaram a procurar um espaço na Barra Funda,  pois queriam um lugar um pouco maior, que comportasse mais pessoas e que possibilitasse uma logística melhor. E então, após alguns meses de busca, encontraram o lugar perfeito, espaço que sediara o “novo” Boteco da Dona Tati, bem ali, onde a história do Camisa se criou, se reinventou e segue viva em brasa até os dias de hoje. No cruzamento das ruas Brigadeiro Galvão com a Conselheiro Brotero, ali aos pés da Barra Funda, no limite do centro com a Zona Norte de São Paulo, toda essa caminhada seria reescrita, com o aval dos mais antigos e as bênçãos de sua majestade, o samba.

“Há 50 metros daqui foi onde o Camisa renasceu. Foi onde seu Inocêncio Tobias trouxe o Camisa de volta e onde a primeira casa de samba de São Paulo existiu, o São Paulo Chique, também há poucos metros daqui.”

Em um lugar extremante privilegiado, Dona Tati e Thiago reinauguraram, em outubro de 2017, o novo espaço. Como não poderia ser diferente, o evento de reabertura contou com o show da Velha Guarda Musical do Camisa Verde e Branco, trazendo para dentro do novo espaço as tradições que Thiago tanto buscava. Próximo ao Largo da Banana, reduto e tira-teima dos sambistas de outrora, o público do boteco começou a ser, também, repaginado, dando vez a novas figuras que hoje coexistem com o público da região, o cativo do bar e os que veem pelas rodas de samba.

Hoje, o “público do boteco é completamente diversificado e democrático. Vem desde o nego véio de samba ao casal gay que se sente completamente a vontade pra estar aqui. Mas todos vem pelo samba e pela cultura”. Passando a contribuir com o ambiente a sua volta, o Boteco da Dona Tati, quando fechado, deixa tristeza em todo mundo, até nos comerciantes que estão ao entorno. É que, quando o bar está lotado, todos os demais estão lotados também.  Agora sim, o botequinho abrigava, a altura, o samba e, sobretudo, as delícias da culinária tipicamente brasileira.

DELÍRIOS DA BAIXA GASTRONOMIA

A mudança de espaço possibilitou, além de tudo, uma maior atenção ao cardápio, uma vez que a cozinha é bem mais espaçosa, o que permite um melhor desempenho culinário. “A nossa antiga cozinha, por conta de ser muito pequena, limitava o nosso cardápio”, relata Thiago. Uma das suas principais bandeiras dentro da gastronomia do boteco, inclusive, é o resgate da brasilidade. O cardápio do botequim foi dos americanos hambúrgueres à brasileiríssima feijoada da Dona Tati, um patrimônio que deveria ser tombado pelo Estado. E não fica só na feijuca não! O cardápio hoje é bastante vasto e apresenta, também, opções veganas, como o bolinho de grão de bico com molho tarrini, por exemplo, que é, também, uma delícia. Recentemente, uma receita de maniçoba, a “mandioca brava”, está sendo inserida no cardápio da casa, trazida diretamente da Bahia para São Paulo.

“O processo de voltar às brasilidades já vinha acontecendo, que foi justamente quando eu descobri que o samba não deveria ser só uma música sendo tocada no boteco, mas sim um resgate da ancestralidade.”

O forte da casa, na visão de Thiago, são os bolinhos. Tem bolinho de carne seca, de feijoada, de um tudo. Inclusive, este ano, o Boteco da Dona Tati participou do famoso festival Comida di Buteco com uma iguaria pra lá de brasileira: O bolinho de rabada com Jambu. O prato, inclusive, é mais uma das tentativas de resgate das tradições da família de cozinheiros tipicamente brasileira. “Como eu disse, venho evidenciando o lado negro da família, mas reparei que não tava olhando pra uma coisa muito importante: a parte indígena”. Da junção dessas culturas nasceu este bolinho crocante, suculento e macio ao mesmo tempo, que vem acompanhado de um molho de tomate artesanal levemente apimentado, fator que potencializa o sabor dos elementos. Ao festival, porém, Thiago tem um posicionamento crítico, uma vez que, apesar da visibilidade que traz, não é necessariamente a cara do Boteco da Dona Tati. “É legal, conta a história de muita gente que não tem a oportunidade de falar, mas o botequinho já conquistou esse espaço de fala, sabe?”

E entre histórias, comidas, bebidas e sambas, o Boteco da Dona Tati segue seu rumo, mais vivo do que nunca, na Rua Brigadeiro Galvão, 639, no Bairro da Barra Funda, aberto de quarta a sábado, sempre com uma programação musical escolhida a dedo, que você pode conferir clicando aqui.

 

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