O jovem estado do Mato Grosso do Sul busca obstinado estabelecer a sua tradição cultural, a pergunta que fica é: quantos quilos de medo ainda faltam?
Era segunda metade do século XIX e o Brasil aspirava novos sonhos enquanto nação liberta, cortejava a república e o abolicionismo quando Machado de Assis escreveu o genial artigo “Instinto de nacionalidade”. Para compreender a totalidade do pensamento, se é que isso é possível, devemos ir ao texto, mas de modo geral, há uma crítica direta de Machado de Assis aos escritores de seu tempo, poetas ou romancistas. O instinto de nacionalidade, segundo ele, era a fissura que parecia acometer a todos os autores brasileiros, se tratava de uma obsessão pela chamada “identidade nacional” ou da “brasilidade”. Para Machado, esta obsessão destes escritores em retratar os índios acabou por tornar sua figura caricata, ou violentada e adequada ao colonizador, além de fechar os olhos para outras questões do Brasil em seu tempo, em outras palavras, reduziu as complexidades de todo um país a uma caricatura indigenista. Mesmo com a obsessão dos escritores, a literatura brasileira mal alvorecia. É preciso frisar esta afirmação, já tínhamos Santa Rita Durão, Gonçalves Dias, José de Alencar e outros mais, mas ainda assim a literatura nacional mal alvorecia.
No Século XIX o crítico inglês T.S Eliot iniciava o seu ensaio Tradição e talento individual cravando a seguinte frase:
“Nos textos ingleses é raro falarmos de tradição, embora ocasionalmente utilizemos esta palavra para lamentar a sua falta”.
É preciso contextualizar que a afirmação é feita por um dos principais estudiosos da literatura em seu tempo e se referindo a uma literatura muito mais antiga que a brasileira, uma literatura que ostenta autores como Charles Dickens, Jane Austen e Willian Shakespeare, ainda assim, para Eliot, só se usava a palavra tradição para se queixar sobre a falta dela.
Incrivelmente o Estado do Mato Grosso do Sul se distingue, ao que parece, fala-se em tradição cultural muito mais aqui do que no Brasil de Machado de Assis ou na Inglaterra de Shakespeare. Fala-se em tradição desde a roda de bar dos artistas até as conversas institucionais sobre políticas públicas de incentivo a cultura.
Nos bares se escuta:
“Precisamos resgatar a tradição de nossa música sul-mato-grossense”
Enquanto nos gabinetes se estabelecem critérios de “regionalidade” para avaliar os projetos culturais que serão ou não financiados.
Falar sobre tradição sul-mato-grossense já é um problema visto que a emancipação do estado ocorre em 1977, quando é separado do Mato Grosso, é difícil pensar que uma tradição cultural distinta e singular se crie a partir de uma nova jurisdição, levando em consideração que as identidades culturais, se é que elas existem nos âmbitos regionais ou nacionais, são frutos de um processo histórico longo e de intercâmbios imensuráveis. O que teríamos com muito empenho dos críticos em fundamentar uma defesa razoável, seria uma identidade Mato-grossense, ou identidade pantaneira, mas levando em consideração que nem mesmo as nações mais consolidadas juridicamente podem, com tranquilidade, afirmar a existência de uma identidade única, o que temos é identidade nenhuma.
Esta questão não é uma exclusividade do Mato Grosso do Sul, em todos os cenários, a constituição da chamada identidade nacional e ou regional se deu por motivações outras que não a estética. No caso do Mato Grosso do Sul, por exemplo, uma campanha de constituição pautada nas belezas naturais, por exemplo, é revestida de um forte cunho político ideológico e nenhuma vocação estética. A invocação de termos como os animais do pantanal e até mesmo a pecuária, impostos por esta campanha ideológica como elementos de identificação ou representação desta identidade, é dual, não considera nem as multifacetadas percepções sobre estes elementos, a criação de gado, por exemplo, representa para o latifundiário o acúmulo de riqueza e a prosperidade de um setor econômico que contribui imensamente para o Brasil, este é o orgulho provinciano da cultura pecuária, em sua percepção, sem o boi e o agro do Mato Grosso do Sul o Brasil não seria nada. O mesmo elemento, para os índios que habitam o estado do Mato Grosso do Sul, representa mortes, desapropriações, direito ao trabalho e a vida negado e polícia militar aparelhada pelo agronegócio. Já para os que não são criadores de gado, este elemento singular de nossa identidade regional significa fumaça de queimadas criminosas no Pantanal invadindo nossos pulmões.
Há interesse, por parte do poder público que financia a produção cultural, em revelar nas obras produzidas no estado o genocídio indígena ou as queimadas criminosas praticadas por fazendeiros? Um projeto cultural que estime falar sobre estas mazelas, que nota ele receberia no quesito “regionalidade” do edital?
Para evitar interpretações equivocadas, é preciso dizer também que, embora a possibilidade de uma identidade regional esteja categoricamente descartada, isto é, não existe perspectiva teórica que dê conta de estabelecer uma identidade cultural rígida, não significa que não haja talentos individuais potentes nas diversas áreas e linguagens da arte, a questão é que as atenções não se voltam para estes talentos, não se busca analisar a elaboração individual do artista com suas técnicas e referências expressas livremente em suas obras, mas buscam uma linguagem uniformizada com as cores da bandeira, uma interferência direta na liberdade artística, premissa básica para que a arte seja arte.
A inexistência de uma crítica qualificada e a presença de um “comadrismo” estéril na coluna social dos jornais e dos blogs, intensificam o discurso deste ideário conservador, coincidência ou não, a obra dos talentos individuais mais interessantes na forma e mais ousados no conteúdo não encontram abrigo na crítica chapa branca, o poeta Douglas Diegues, por exemplo, citado em estudos acadêmicos sérios da área de letras em outras regiões do país, é completamente ignorado nas páginas da “crítica sul-mato-grossense”, assim como o Teatro Imaginário Maracangalha, não aparece em um parágrafo da chamada “crítica”, mesmo tendo uma obra de potente apelo popular e político, mesmo trazendo a tona a realidade que todo mundo vê, mas continua fingindo que não existe. Em detrimento destas obras incríveis e provocadoras estão músicos velhos e cafonas, pintores caricaturistas e poetas fraquíssimos que há anos produzem a mesma coisa, se estabelece, ainda que velada uma exigência reacionária para que as obras apelem para invocação dos elementos regionais não como eles são na realidade, híbridos, violentos, sangrentos e contraditórios, mas como o ideário político tenta vendê-los: tropical, pacífico, provinciano e repleto de belezas naturais.
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