Derretido

Conto: Gabriel Lima | Ilustração: Filipe Rocha

Assim que entrou pela porta, deixou o casaco carregado de neve no cabideiro. Livrou-se do jaleco, arremessou a maleta profissional em cima do sofá – confiando na própria pontaria e na maciez do móvel cinza – e foi direto até a maleta musical: um xodó chamado Keepsake Deluxe – talvez o toca-discos mais charmoso da Crosley. Logo, em um contraste planejado com o gesto anterior, Gilmar retirou delicadamente a agulha do descanso e pousou-a na primeira faixa do primeiro disco do Bowie – o primeiro também da sua lista de favoritos.

“Isso de atender clientes depois do horário passou do limite”, disse baixinho pra si mesmo, tentando não acordar a esposa enquanto abria a meia garrafa de Ballantine’s e banhava as duas pedras de gelo do copo.

Aos poucos, tentou também relaxar ao som quase inaudível das palminhas ritmadas de Uncle Arthur. Lembrou-se de como era bom ter uma poltrona reclinável e logo usufruiu desse recurso de conforto para aliviar os pés e esvaziar a mente das reclamações de dor e recomendações repetidas que deu durante o dia. Com os olhos fechados, Gilmar não arriscou interromper a música com nenhum gole e, até que ela terminasse e o ruído de mudança de faixa soasse, preferiu apenas girar suavemente o liquido destilado no sentido horário. Quando a última palma foi reproduzida, Gilmar levou o copo à boca na ânsia de beber tudo de uma só vez.

O uísque desceu com deveria, massageando o céu da boca. O único cálculo errado do gole foi o ângulo de altura do copo, que fez uma das pedras de gelo entrar e se alojar em sua garganta. E ali ela ficou.

Às 2h43, o momento de relaxar quase se tornou um pesadelo alcoólico-gelado. Foi nesse minuto que sua vida se dividiu entre a que se passou até aquele gole desastrado e a que viria – incerta – se aquele cubo saísse do pescoço. Não seria o tipo de morte que um clínico geral se orgulharia. Principalmente depois de anos lidando com a quase morte alheia e com todas as técnicas de primeiros socorros decoradas a exaustão. “Então é assim, engasgado, que vou morrer”, pensou Gilmar, exagerando a situação, sem saber se achava graça até o gelo derreter ou se preocupava com a possibilidade disso não acontecer tão rápido.

Ao olhar o retrato de família na estante, Gilmar viu sua face deformada enquanto as outras permaneciam intactas. E, ainda envolvido em sua pequena dramatização, começou a pensar que aquele registro de um passeio dominical no Battersea Park poderia ser sua última visão. O que se reforçou quando a falta de ar começou a incomodar e a primeira dose de adrenalina foi introduzida em sua corrente sanguínea. Atônito, Gilmar sentiu que iria de fato ver sua vida diluir diante de seus olhos enquanto Bowie recitava “and when she smiles, the ice forgets to melt away” em Sell Me A Coat.

E foi quando as mãos de inconsciência já acariciavam seu rosto que um barulho na porta reativou sua atenção e o movimento dos flocos de neve despencando de seu casaco o fizeram esquecer por um momento o ar que faltava em seu corpo. Continuava a ver tudo em câmera lenta, mas agora a cena mais se parecia com aqueles enfeites de Natal que a gente chacoalha e deixa parado para ver nevar dentro dele.

O primeiro pé entrou pela porta e logo se livrou da bota. O outro, quando entrou, repetiu o gesto. O par de botas foi retirado do chão por uma mão delicada, já sem luva, e os dois pés com meias coloridas avançaram e se voltaram na direção de Gilmar.

– Pai?!

E como se alguém tivesse dado um soco em seu diafragma, Gilmar sentiu o gelo se mexer e descer com dificuldade, liberando seus brônquios para o oxigênio.

–Ahhhh – e foi recuperando o ar mais lentamente do que gostaria, disfarçando.

– Pensei que o senhor já estivesse dormindo.

– Não, vim relaxar um pouco – e exibiu com a mão ainda trêmula o copo vazio.

– O senhor nunca bebe. Aconteceu algo?

– Nada importante, só quis relaxar hoje.

– Cadê a mamãe? – disse Renata, olhando para as escadas.

– Dormindo.

– Vou acordar ela pra ver o senhor, você tá pálido.

– Não é nada, filha, já falei.

– Bom mesmo assim vou, só por garantia – e pôs o pé no primeiro degrau.

– Bom, eu acho desnecessário, mas já que você insiste, aproveita e explica para ela onde a senhorita estava até essa hora.

Renata para, engole seco e se volta novamente para o pai, espremendo os olhos como quem quer enxergar melhor.

– Nossa, pai, deixa-me ver: o senhor está bem sim. Boa noite.

– Volta aqui, mocinha. Você tem razão, melhor chamar sua mãe.

– Que é isso. Você tá bem. Deixa ela dormir. Vou também.

– Ok, mas só depois de me dizer o que é essa pintura no seu rosto. Você foi naquela fest…

– Não, imagina! – Renata o interrompe. – Eu fui na…

De repente outro ruído de mudança de faixa soa e Love You Till Tuesday começa.

– (…) Bowie! Isso, na exposição do Bowie. Você tinha que ver. Aí lá eles me pintaram.

–Ah sim, sei, aquela que saiu de cartaz mês passado? – diz Gilmar, entrando na brincadeira.

Renata fica em silêncio por alguns segundos enquanto ouve o trecho “don’t be afraid of the man in the moon, because it’s only me”. Fica séria por um momento e olha fixamente para o pai, assistindo toda a sua vida com ele passar diante dos seus olhos até aquele momento onde o vê, finalmente, como amigo. Um amigo recuperando a cor original do rosto e que anos atrás, nessa mesma situação, apenas a olharia com olhar de repreensão. “Ele mudou” veio ao pensamento junto com um pouco de emoção que ela não saberia explicar de onde surgiu – talvez fossem os drinks que tomara horas antes.

– Você não muda, né, mocinha?! – diz Gilmar, interrompendo os pensamentos da filha.

– Nem você, né, Doutor Gilmar.

– Não mesmo, enfermeira Renata.

– Enfermeira não… estilista. Já falamos sobre isso.

– Ok, ok, desculpa. Só me diz uma coisa: estilistas bebem?

– É claro, né, pai.

– Então pega um copo e termina esse disco com seu velho.

– Será um prazer – disse sorrindo, enquanto ia até a estante pegar um copo.

Gilmar nessa hora volta calmamente o encosto da poltrona ao lugar original e a gira na direção da filha, que agora está com a pinça a caminho do balde de gelo.

– Renata, larga isso agora! – Gilmar berra, acordando a esposa no quarto de cima.

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