Foto: Hudson Rodrigues | Texto: Chloé Pinheiro
Quando cheirou o arroz velho na panela para ter certeza de que poderia comê-lo, Ronaldo nem imaginava que algo muito mais figurativo embrulharia seu estômago mais tarde. Às 17h30, fritou um bife de fígado acebolado na frigideira torta e manchada e comeu com arroz e um refrigerante barato, sozinho na mesa com duas cadeiras na cozinha que não devia ter nem dois metros quadrados. Pontualmente às 18h30, depois de um banho custoso no frio desgraçado que às vezes faz em São Paulo nessa época, saiu da casinha de um quarto no extremo da Zona Sul para repetir o que fazia há três anos: bater cartão às 20h30 no Hotel D’Ajuda.
Bem próximo à espelunca no centro da cidade que empregava Ronaldo e mais uma dúzia de gente perdida na vida, Dulce também cheirava. Outra coisa. Cheirava em linhas o ânimo pra começar cedo o batente hoje. “Tá cedo demais Dulce, pelo amor de Deus, desse jeito cê vai ficar com cara de mais velha ainda”, dizia a dona do boteco que ficava do lado do quartinho que Dulce ocupava há dois meses. Recém-chegada na cidade, Dulce ainda não entendia dessas coisas. Nem do tal pó gostava de verdade, mas sentia que precisava disso e, afinal, quem é que não cheira nesse lugar. Às 19h30, começou o ritual de arrumação para sair pra rua.
Ronaldo se agarrava àquele emprego como se fosse sua única motivação na vida além de manter os cinco relógios de parede da sua casa sempre funcionando. Tic tac tic tac tac tic. O tempo sozinho — já havia perdido as contas de quanto era, talvez 20, talvez 30 anos — o haviam feito um homem metódico e que tinha poucos passatempos. Um pouco de canções de bailinho dos anos 60 ali, consertar relógios dos vizinhos de vez em quando. Cumprimentou o pessoal da rua, a faxineira (essa sim, muito mais fodida que ele, já que ainda tinha que limpar fluídos corporais de toda espécie) e sentou no seu banquinho da recepção. Até às 06h30. Ia aguentar, mais um dia.
“Sai daqui, sua puta velha”. Essas palavras, seguidas de uma das muitas bofetadas que havia levado na vida, foram as últimas coisas que Dulce ouviu do marido que na verdade nunca amara antes de sair mesmo. E virar puta mesmo. Não era isso que ele queria? Pois então. Na hora, o grito de liberdade fora lindo. Agora, Dulce amargava e engolia diariamente uma São Paulo nada fácil, misturada ao sêmen de homens que também não eram nada fáceis. Não era tão ruim assim. Melhor do que continuar vivendo com um merda. Pelo menos de vez em quando era chamada de gostosa. Não tinha o corpo nada mal para uma mulher de 50 anos. Os cabelos continuavam castanhos à custa de muita tintura barata e a pele viçosa. Se entregara tardiamente aos vícios, tinha essa vantagem em relação às concorrentes na calçada de sua faixa etária.
23h40, 23h41… Ronaldo brincava distraidamente com o relógio em sua mão. Era uma noite atípica aquela. Nenhuma gritaria, nenhum vidro quebrado, nenhuma menina tão nova que poderia ter sido a filha que ele nunca teve. Até que Dulce entrou meio cambaleando pelo pequeniníssimo saguão. Com o salto nas mãos, o vestido brilhante amassado e o braço apoiado nos ombros desse homem barrigudo que a apoiava pela cintura. Podia ser a mãe de alguém que se divertiu demais na formatura e resolveu esticar a noite com um bom partido. Mas Ronaldo sabia que não era isso. Algo denunciava aquela falsa felicidade. Era a primeira vez que Dulce levava um cliente pra lá, mas todas essas mulheres eram iguais. Ronaldo as conhecia. Nunca se interessou. Nem sabia a última vez que tinha transado com alguém. Ereções eram um sonho distante.
Havia algo além de desespero e cocaína no olhar daquela mulher que pedia três horinhas no quarto padrão. Jesus, como aquilo que Ronaldo não sabia o que era o perturbava. Pediu o pagamento adiantado dos 30 reais e deixou eles subirem. O padrão. 01h20, uma hora e meia depois da entrada, o homem sai rápido, não olha pra trás. “Não se acha mais uma puta decente nessa cidade de merda”. O terno continua alinhado. Ronaldo estranha, mulheres da vida não dormem depois de atender à clientela. Não as que ele conhecia. Espera um pouco e escuta um barulho de vidro quebrando. Ela se jogou da janela do segundo andar, e isso nem é uma música do Legião Urbana. Burra, ninguém morre pulando de uma altura tão ínfima. Ela não era sortuda o suficiente pra dar cabo da vida agora.
Ronaldo sai correndo e encontra Dulce com os pés aparentemente quebrados, um pouco de sangue e a cara de quem apanhou mas não do meio fio. Ela não fala nada com nada e ele, depois de ligar pra ambulância, quebra os protocolos de primeiros socorros e a coloca com a cabeça no seu colo. Era a primeira vez em séculos que alguma mulher chegava tão perto dele. Ali, ele percebeu porque explodira um pouco dentro dele quando a viu. E foi ela quem disse, entre delírios e resmungos. “Ronaldo, é você?”. Tinham sido namorados num tempo muito distante, até engravidaram. Ela perdeu o filho e se tornou uma mulher amarga. Ele perdeu o emprego na fábrica principal da cidadezinha do interior e não conseguiu se reerguer. Bebiam, mas mesmo as doses não mudaram o fato de que a presença de um se tornara intragável para o outro. Essas coisas da vida que parecem tão pequenas agora.
“Ela está com o senhor? O que aconteceu?”, pergunta o doutor da ambulância. “Não senhor, hóspede daqui do hotel, não vi, deve ter caído da janela sem querer”. 02h15, Dulce, perdida na loucura da queda e das drogas e do ex-marido e de Ronaldo e do rímel borrado, nem vê a negativa, é colocada na maca e vai. Ronaldo volta pro balcão e lá permanece até às 06h30. Vai pra casa sem nenhum arranhão. Dulce pelo menos vivera mais que ele. Covarde, ileso, sem nenhum arranhão além da sensação de estar intacto. Pior que a morte.
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