– É o cabelo branco, tio.
Era a Fernanda, minha sobrinha, tentando explicar porque de tanta gente me achar mais velho, querendo acalmar aquela minha indignação encenada.
– Não é possível! Estou cansado de tanta gente me conduzir para as filas do atendimento preferencial e me ceder assentos. Noutro dia, a mulher até se zangou comigo na lotérica: “Também, esse povo tem a fila deles e fica aqui na nossa!”
– Pinta o cabelo, tio! Vai por mim.
É claro que eu já havia me enveredado pelo mundo da cosmética masculina. Tentativas desastradas, saliente-se. Numa ocasião, fui a salão renomado na cidade. Pedi claramente:
– Você pode espalhar o branco? Tive a ilusão de que se mudasse a inflexão na voz ela entendesse que o que eu queria mesmo era ficar entre um Kenny Rogers da década de 80 e um George Clooney de 90. A moça não entendeu. Depois daquele preto retinto escorrer pelas minhas costas inteiras, a perversa ainda sugeriu:
– Vamos pintar a sobrancelha também?
Foi tudo muito rápido. Lembro-me de uma outra maluca no salão olhar para mim com uma curiosidade de cirurgiã, depois de “o procedimento” ter-se dado por completo e exclamar: “Mas ficou muito bom! Vou falar pro meu marido fazer também…
Jamais poderá haver pior quadrilha do que a das mulheres!…
Quando encontrei a Loira no Shopping, só um desastre explicaria aquela cara de horror e transtorno…
– Meu Deus! Você ficou igual o Batman…
Nunca mais usei aquela impostação vocal.
Nenhuma outra idade me deu mais alegria que estes 50 anos de agora. E esconder o que essa brancura toda revela me faria mal. Antes dos 40 eu não tinha barba, mas depois eu a deixei crescer e fez bem deixar o tempo passar, aceitar que aquele moço de cara limpa é das páginas já lidas. É das fotografias no papel.
Minhas cãs não me lembram da passagem do tempo. O que me faz isso é a morte. Mais e mais pessoas desaparecendo, sumindo e eu diante de toda essa enormidade natural. Feito essas nuvens muito grandes recobrindo os vales de sombra em dia de sol.
Depois do meu pai, meus tios começaram a ir-se também… um a um, numa lentidão enganosa e paradoxal. Lá fora uma ligeireza de rio furioso; nos cemitérios, aquele instante vagaroso do cortejo carregando parte do que fomos: infância, adolescência…
O branco da velhice não é véu, é mortalha. E nesses tempos de juventude eterna (tsc…), ser um velho orgulhoso é excentricidade, uma doença, quase. Exatamente como a morte, para muitos, já vem se tornando.
Aprendi na simplicidade muda e sábia do povo caipira que a morte é parte da vida. Não é doença, é lembrete: cuida de viver sua vida consciente! Desperto! Alerta! E que quem morre não vira estrela, não faz viagem longa: morre. Assim…
Claro que eu fantasio no amor infinito de Deus. Imagino que depois daqui, bem pode ser o que a gente acreditar que pode existir… uma vilinha da gente amiga, como sabe existir lá nos cantos de Minas Gerais. E a gente tomando café na casa de um num dia, e no de outro noutro dia e no de outro…
– Acho que não morro sem ter dito à minha família e aos meus filhos e aos amigos o quanto eu os amo! Vivo sempre de recadinhos, cuidando, cuidando… mas esses livros todos? Acho que eu não vou conseguir ler!
– Não se preocupa, professor. Você vai poder ler tudo no lado de lá.
– Verdade?
– Sim. Isso é fácil.
– E eu vou rever todo mundo que foi antes de mim? E posso receber os que forem depois?
– …
– Mas será que não vamos estar muito diferentes? Será que a gente vai se reconhecer?
– Você vai ficar com essa mesma aparência de agora.
– Ahhh… que alívio.
– Mas,…então… então, eu não vou mesmo pintar o cabelo…
– Éh. Não vou não.
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