Sempre que revejo os filmes de Charles Chaplin, sinto o mesmo gosto: chantilly. Não só o chantilly, mas chantilly com morango e suspiro. Minha relação com o cinema sempre foi mais emocional do que racional. E sempre achei que o cinema tem gosto. E não necessariamente gosto de comida. Por exemplo: os “road movies”, como Easy Rider, 1969, de Dennis Hopper. ou Paris, Texas, 1984, de Wim Wenders, têm gosto de “vento no rosto”. Como diria Nelson Rodrigues, os idiotas da objetividade perguntariam: mas “vento no rosto” tem gosto? Respondo que sim. “Vento no rosto” tem gosto de liberdade.
O poderoso chefão: todos os filmes da trilogia têm gosto de “macarronada da nonna”. Sempre que abro o cardápio de uma cantina italiana, acho que estou escolhendo entre filmes de gangster. Quando falo “Fettuccine com polpetone” e o garçom responde “mal passado ou ao ponto?”, parece que eu disse Os bons companheiros e o cara da locadora (garçom) respondeu “em dvd ou blue ray?”.
E os romances. Assim como na vida, no cinema temos vários tipos: os sérios e os sem compromisso. Os picantes e os que precisavam de mais sal. Os que são passageiros e os que marcam. Comédia-romântica americana é algo entre fast food e aqueles restautantes de rede, tipo “outback”. E não achem que isto é crítica. Cumpre o seu papel. Mata a fome. Alguns são muito bons. Mas no fundo, são bastante parecidos. Já os filmes românticos franceses têm gosto de “croassaints amanhecidos e vinho”.
Ingmar Bergman tem gosto de comida exótica. Ou você terá uma das melhores experiências de sua vida, ou se prepare para uma indigestão. Depende do dia, e principalmente do prato, ou melhor, do filme escolhido.
Luis Buñuel tem gosto de “ousadia”.
Stanley Kubrick é como o “ar”. Você se dá conta de sua existência e percebe que é impossível viver sem ele.
Psicose, 1960, de Alfred Hitchcok, tem gosto de “frio na barriga”.
Nossas memórias afetivas estão estritamente ligadas ao inconsciente. Desta forma, sempre associei gostos e cheiros a filmes. Procurando entender melhor algo que sinto, pedi ajuda ao arte educador Gustavo Meixner, amigo da minha irmã. Hoje ele mora em Londres, mas quando vivia em São Paulo realizou um trabalho muito interessante, liderando visitas de grupos de deficientes visuais a museus. Perguntei a ele como é o sonho de cegos. Gustavo respondeu: “muitos me diziam que o sonhos estavam mais ligados a sensações, sons, cheiros, etc… Sobre imagens mentais, algo como a referência que nós temos sobre as coisas que conhecemos e as experiências que vivemos. E parece que apesar do nome, a imagem mental vai muito além do visual, normalmente estando ligada também a outras coisas como som, gosto, sensações e coisas as vezes muito subjetivas, mais relacionadas a experiências pessoais”. Ele completou: “O que eu sei é que para cegos de nascença as ideias não são calcadas em imagens ‘visuais’ e sim nas outras partes, e para os outros que ficaram cegos depois, aparentemente, com o passar do tempo as recordações em imagem vão ficando mais estáticas, como se antes fossem como um filme e passassem a ser como fotografia”.
Existe um tipo de filme que eu amo o gosto, mas nunca consegui dar um nome a este gosto. Deste grupo fazem parte Os sonhadores, 2003, de Bernardo Bertolucci, As invasões bárbaras, 2002, de Denys Arcand, Coração selvagem, 1990, de David Lynch, e O mercador de almas, 1958, de Martin Ritt. Revendo este último, quando Orson Wells, em sua atuação mais visceral, diz: “Gosto da vida, Minnie. Sim, gosto tanto… que talvez viva para sempre”, finalmente consegui dar um nome para aquilo que sempre senti. Estes filmes têm gosto de “sim”. E mais uma vez, os idiotas da objetividade perguntariam: “Mas sim tem gosto?”. Claro que tem. Abre aspas para Clarice Lispector: “Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve”.
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