Álbum traz parcerias de Juliana Linhares com Chico César, canção inédita de Tom Zé e participações especiais de Zeca Baleiro, Letrux e Mestrinho
Primeiro álbum solo de Juliana Linhares, “Nordeste Ficção”, disponível em todas as plataformas digitais, foi imaginado como um roteiro de teatro, um romance de auto ficção ou um docudrama cinematográfico com dois quesitos a cumprir. Ouça aqui.
O disco busca trazer beleza e alegria, remetendo aos deliciosos LPs clássicos de Amelinha, Elba Ramalho, Cátia de França, Terezinha de Jesus e outros nomes da geração nordestina lançados na virada dos anos 1970 para os 1980. Lindo seria se também ecoasse a grandeza melódica e poética de compositores como Alceu Valença, Ednardo, Fagner, Belchior e Zé Ramalho.
O objetivo do álbum é abrir espaço para questionamentos sobre os significados de ser nordestino hoje. Cantora, compositora e atriz nascida em Natal, Juliana foi viver no Rio de Janeiro em 2010. Essa mudança deu a ela um lugar de observação privilegiado a respeito dos clichês com que o resto do país enxerga o Nordeste. A reação a esses estereótipos – e também a compreensão deles – seria material para a criação das canções. E se o Nordeste é uma invenção, como cantou Belchior, a arte segue sendo o meio para desconstruir narrativas. E criar outros nordestes possíveis.
Produzido por Elísio Freitas com direção artística de Marcus Preto, o mesmo que assina este texto, “Nordeste Ficção” abre portas para todos esses encontros. Em 11 faixas, o álbum tem duas parcerias de Juliana Linhares com Chico César e uma feita com Zeca Baleiro, nomes fundamentais da geração 90. Traz a memória afetiva nordestina na regravação do clássico “Tareco e Mariola”, de Petrúcio Amorim. Apresenta tema inédito de Tom Zé, bastião da revolução tropicalista. Agrega compositores da nova geração: Posada, Moyseis Marques, Rafael Barbosa, Khrystal, Jessier Quirino e Caio Riscado. E conta com as participações de Letrux, Mestrinho e do próprio Zeca Baleiro.
Mas voltemos no tempo ao começo de tudo
Há três anos, quando o grupo Pietá vivia um crescente de público e prestígio, sua vocalista Juliana Linhares pegou uma laringotraqueíte. Ficou completamente sem voz por uma semana. Para uma cantora, perder a voz é um acontecimento aterrador, que dispara todo o tipo de crise existencial. No caso de Juliana, o silêncio compulsório desengatilhou uma necessidade de se entender individualmente. Como seria a Juliana Linhares sozinha, dona de todas as decisões, dos erros e dos acertos do próprio trabalho? Logo nos primeiros dias, a cantora telefonou para Posada, cantor e compositor de origem sueca, criado em Pernambuco e radicado no Rio. E, em grunhidos, disse que estava começando a imaginar o que seria sua estreia solo. Não tinha definido nada ainda sobre os caminhos que escolheria, mas estava à procura da direção. Posada enviou três canções. Ela gostou das três, mas uma delas, “Bombinha”, deu à cantora o norte que buscava. O norte, não. O Nordeste.
Pode-se dizer que “Nordeste Ficção”, o álbum de estreia de Juliana Linhares, começou a se desenhar a partir da chegada de “Bombinha”. A canção reflete sobre o sucesso e suas explosões. Segundo Juliana, seus versos retratam um sentimento muito comum entre os nordestinos que vão morar no Sudeste e passam a entender o significado de sucesso em outros termos. “Quem explode é bombinha/ Eu quero é cantar pros meus/ Deixe que eu mesma decido/ Que rainha sou eu”. Ou ainda: “E não quero ir pra Marte/ Quero ir pro Ceará/ Não vim aqui me exibir/ Eu vim aqui te buscar”.
Ao mesmo tempo em que curava sua laringotraqueíte, Juliana mergulhava na leitura de “A Invenção do Nordeste e Outras Artes”, de Durval Muniz de Albuquerque Júnior. Ficou completamente instigada pelo livro. Foi assistir à adaptação teatral feita pelo grupo Carmin e procurou o próprio Durval, que foi muito receptivo. O diálogo com o autor resultou na canção que batizaria este álbum, “Nordeste Ficção”. Foi a música mais difícil de ser elaborada. Começou com a brincadeira de se imaginar olhando no espelho e vendo um cacto no reflexo. O mote inicial foi a lembrança dos mini-cactos onipresentes mesmo em apartamentos do Sudeste: aquela planta que ninguém rega, ninguém cuida, mas que segue firme na força de seus espinhos. A partir dessa metáfora, Juliana escreveu a primeira parte da canção. Questionamentos dos estereótipos colados ao Nordeste deram a tônica da segunda parte. Irmão de Juliana, Rafael Barbosa, fechou com ela a canção.
Do livro de Durval Muniz, Juliana retirou também o texto que aparece na capa do álbum, escrito sobre o retrato feito por Clarice Lissovsky para o projeto gráfico de Ara Teles:
“Pensar a região como uma entidade é perpetuar uma identidade forjada por uma dada dominação. Devemos pensá-la, sim, como uma construção histórica em que se cruzaram diversas temporalidades e espacialidades, cujos mais variados elementos culturais, desde eruditos a populares, foram domados por meio das categorias da identidade, como: memória, caráter, alma, espírito, essência. O Nordeste, na verdade, está em toda parte desta região, do país, e em lugar nenhum, porque ele é uma cristalização de estereótipos que são subjetivados como característicos do ser nordestino e do Nordeste. Estereótipos que são operativos, positivos, que instituem uma verdade que se impõe de tal forma, que oblitera a multiplicidade das imagens e das falas regionais, em nome de um feixe limitado das imagens e das falas-clichês, que são repetidas ad nauseum, seja pelos meios de comunicação, pelas artes, seja pelos próprios habitantes de outras áreas do país e da própria região.”
Para quem gosta de números, foi no dia 13 de agosto de 2020 que Juliana me mandou a primeira mensagem. Dez minutos depois, estávamos em um telefonema que dura até hoje. Começamos logo a apurar a espinha dorsal da história que contaríamos, elucubrando os novos imaginários que poderíamos criar sobre o Nordeste e os nordestinos. Juliana materializou essa questão quando falou em um Nordeste onde fosse possível cantar forró sem o clichê da saia de chita e sandália de couro – e essa imagem está traduzida na foto da capa do álbum. Queríamos, sobretudo, construir um repertório que pudesse servir de ponte para as pessoas se reconectarem com uma voz popular, pelos ouvidos que escutam e pelo corpo que dança: de novo, como Elba, Amelinha, Cátia de França, Terezinha de Jesus etc. E que fosse uma fonte de alegria.
Pois “alegria” foi a palavra-chave trazida por Chico César. Juliana estava em Natal quando decidiu escrever ao compositor paraibano arriscando o convite de parceria. Ele topou. E ela travou. Passou um mês até enviar a primeira letra, mas a resposta de Chico veio em uma hora e meia. Era “Embrulho”, prontinha. No mesmo dia, passaram a noite no telefone. Chico fez um discurso emocionado, argumentando que é absolutamente necessário se manter alegre para resistir. “Juliana, a alegria é revolucionária!” Animada, ela dedicou o dia seguinte a escrever algo nesse clima para enviar ao parceiro. Mais uma hora e chegou a “Lambada da Lambida”. A letra retrata um amor entre mulheres, afeto que precisa estar cada vez mais presente e naturalizado no cancioneiro nacional.
A dinâmica com Zeca Baleiro foi parecida. Assim que ele acenou afirmativamente para a parceria, Juliana buscou em seus escritos “algumas dores do tempo”, como definiu, e enviou a ele. Quando chegou a música pronta – que tem, desde a raiz, o estilo tão particular do compositor maranhense – ficou evidente que a voz de Zeca teria de estar também na gravação oficial. Ele topou. “Meu Amor Afinal de Contas” ganhou clipe dirigido por Mariana Moraes.
“Balanceiro” nasceu de um encontro pós-“Samba do Trabalhador”, a famosa roda carioca. Juliana, Sami Tarik e Khrystal foram para a casa de Moyseis Marques. Sentaram com o violão e o caderninho ao redor da mesa e começaram a tocar. Juliana foi anotando o que surgia. Todos saíram de lá realmente bêbados e, como é comum nesses casos, nem se lembraram da existência dessa composição. Mas Juliana encontrou o papel amarrotado em uma agenda. Ligou para Khrystal com a parte da melodia que ainda tinha na memória e fecharam a música. Para a gravação, convidamos o genial Mestrinho, que construiu um delicado diálogo da sanfona dele com a voz de Juliana.
Caio Riscado é coautor de “Armadilha”. Performer e professor universitário, ele já dirigiu shows do Pietá e do Iara Ira, projeto musical de Juliana com as cantoras Juliana Vargas e Duda Brack. Desde que Juliana contou do desejo de fazer um trabalho solo, Caio passou a enviar ideias. Fizeram “Armadilha” inspirados pelo “Grande Encontro” de Alceu, Elba, Geraldo Azevedo e Zé Ramalho. A melodia da canção traz a influência moura que sempre pautou a música feita no Nordeste.
“Aburguesar” é uma letra inédita de Tom Zé. A canção estava perdida em uma antiga fita de rolo, provavelmente de 1972, e foi encontrada quando fizemos o “Vira Lata na Via Láctea”, álbum dele que eu produzi em 2014. Àquela altura, Tom Zé entendeu que os versos que tinha escrito estavam datados e optou por não usá-los. Mas o mundo deu voltas estranhas e nos trouxe para tempos tão ou mais nefastos do que aquele começo de anos 1970. E a carga amarga, cínica e política de “Aburguesar” volta a fazer completo sentido. Cantora tão teatral quanto Juliana, Letícia Novaes – a Letrux – veio dividir os vocais da canção. Essa é a única faixa do álbum que não tem produção musical de Elísio Freitas. Quem assina é o também carioca Vovô Bebê.
Outra canção política, “Frivião” também foi escrita em parceria com Rafael Barbosa. É um manifesto anti-Bolsonaro. Juliana compôs a melodia com arranjos de boca, rabiscou a letra e deu para o irmão terminar. O arranjo remete ao carnaval e à vontade de rua gerada pela pandemia.
O álbum “Nordeste Ficção” traz duas regravações
“Tareco e Mariola” é um hino no Nordeste, um forró clássico de Petrúcio Amorim consagrado na voz de Flávio José. Quando foi morar no Rio, Juliana percebeu que ninguém conhecia a canção. Começou a cantar nas apresentações do Pietá e viu que ela causava comoção geral. Uma curiosidade. Quando anunciaram a primeira edição do programa “The Voice Brasil”, por insistência do pai, Juliana se inscreveu cantando “Tareco e Mariola” e chegou até a passar algumas fases. Uma canção tão importante em sua história de intérprete não poderia faltar no álbum de estreia.
A outra regravação, “Bolero de Isabel”, foi escrita por Jessier Quirino e já conta com uma linda versão de Xangai. Quando adolescente, Juliana mergulhou na obra de Quirino a partir de uma montagem, na escola, de espetáculo teatral de autoria do poeta paraibano. Logo que se mudou para o Rio, costumava cantar “Bolero de Isabel” acompanhada do violonista Rodrigo Garcia. Chegaram a fazer uma gravação caseira da canção e enviaram ao pai de Juliana, absoluto fã da composição. Pois a gravaçãozinha rodou de whatsapp em whatsapp até chegar no próprio Jessier, que procurou Juliana e enviou uma mensagem poética agradecendo. Rodrigo Garcia toca viola caipira e violão barítono na nova versão da música.
Aos 31 anos, no auge das possibilidades vocais, Juliana Linhares encontrou em “Nordeste Ficção” seu discurso individual, o texto e o som que quer defender em um Brasil tão obscuro e tumultuado como este de 2021. Mas esse ainda é o primeiro passo, o início de um diálogo que ela pretende abrir e potencializar mais e mais no desenrolar de sua carreira solo. Como uma performance de vida e não apenas como um pensamento isolado nos limites de um álbum. Voltemos a Durval Muniz de Albuquerque Júnior: “O problema, antes de ser coberto pelas cinzas de uma resolução teórica, deve ser soprado para que apareça em todo seu ardor de brasa. Ele deve voltar a queimar, a incomodar. É preciso que a invenção do Nordeste deixe de ser uma questão adormecida, para voltar a ser reposta em nome do amor à vida que ainda é possível, em nome do amor aos homens, que ainda nos deixa em dúvida, certos de que não há nada mais inumano que a certeza, parente da morte. Se a vida é amiga da arte, é possível com arte inventarmos outros Nordestes, que signifiquem a supressão das clausuras desta grande prisão que são as fronteiras”.
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