Years and Years é uma distopia possível iniciada em 2019, quando uma candidata conservadora, medíocre, grosseira e anticiência chega ao poder desestabilizando a Inglaterra, a Europa e a geopolítica mundial.

Years and Years é composta de seis episódios e é produzida pela BBC de Londres. Do jeito que eu gosto, uma temporada só.

O diretor Russell T. Davies combina os piores pesadelos da tecnologia, em estilo Black Mirror, com as perspectivas mais sombrias da política nacional e estrangeira. Vivienne Rook (Emma Thompson) representa a ascensão da extrema-direita, uma mistura indigesta das lideranças populistas e raivosas de países como França, Estados Unidos, Hungria, Filipinas e Brasil. Ela detesta estrangeiros, detesta negros, detesta a cultura e as artes, mas seduz as pessoas por “dizer o que pensa”, por parecer diferente dos políticos tradicionais.

Todas as minorias em um lugar só

Vivendo as transformações sociais deste tempo, está a família Lyons, composta de um casal multirracial, duas filhas (uma antissocial, obcecada por tecnologia e que sonha em converter-se num programa de computador), um funcionário público gay com seu marido, um refugiado croata, uma mãe solo paraplégica namoradeira com dois filhos pequenos, uma tia militante terrorista, e unindo a todos, a velha matriarca que vive numa velha casa herdada, em Londres. Cada final de temporada dá saltos temporais abruptos, mostrando as reviravoltas nas vidas dos Lyons arrastados pelas mudanças no mundo, nos quinze anos seguintes.

O futuro: as pessoas transam com robôs, usam máscaras de hologramas e sonham em se tornarem “transumanas”, descartando seus corpos para levar uma existência puramente virtual (mas as conversas online ainda têm problemas de conexão). A natureza está desaparecendo – as borboletas, por exemplo, estão extintas. Os discursos de ódio aumentam, e a revolta contra o conhecimento também: cada vez mais pessoas acreditam que a Terra é plana.

 

Humor, dramas familiares, história de amor, crítica política, horror, nonsense e perplexidade

A série mostra o impacto, nada benéfico, do avanço tecnológico vertiginoso que aliena e estupidifica a população. A tecnologia, a internet e a mídia alteram não só comportamentos, destroem modos de vida, uberizam os empregos, arrastam o mundo à miséria e ao caos, levam à polarização e a guerras.

A série tem condução frenética, com edição dinâmica, aqui e ali a câmera na mão empresta um veracidade documental às cenas. Há abruptas passagens de tempo e espaço, diálogos com o típico humor cínico dos ingleses, traições imperdoáveis que quase desagregam o afeto que une a família. A ascensão da líder política obtusa é pontuada na televisão em programas ridículos de auditório, debates pífios, grotescas frases de efeito de bombástica, vulgaridade, ou seja, tudo que já vimos com Trump e Bolsonaro. Ao assistirmos Years and Years, impossível não sentir que estamos diante de um espelho.

 

 

A arte reflete a vida

Assim, na vida dos Lyons se refletem, além de decisões pessoais equivocadas, também os retrocessos políticos que ampliam as injustiças sociais. Crises levam à miséria, ao aumento da exclusão, aos discursos de ódio, à xenofobia, à violência, ao autoritarismo que favorece a instauração de ditaduras. Logo, LGBTs são perseguidos, imigrantes são lançados à morte em campos de concentração, contaminados por gripes, deixados para morrer. Nada passivos, uns Lyons aderem ao negacionismo político, outros combatem o sistema militando ativamente feito terroristas, se arriscam e outros só procuram sobreviver. Ocorre tantas viradas quanto catástrofes na série, que é impossível não se ver enredado nas perdas, reencontros, dramas e alegrias da família Lyons.

Neste futuro “fictício” tudo só tende a piorar. Mais chocante do que imaginar uma Terceira Guerra Mundial envolvendo os Estados Unidos e a China é descobrir a naturalidade com que o roteiro mata Angela Merkel e reelege Trump – ou seja, sua alusão direta à geopolítica contemporânea.

 

 

Um pouco além do Black Mirror

Cada episódio é mais perturbador que outro e tenta condensar, numa velocidade espantosa e com um teor gravíssimo, os maiores problemas do século XXI em um único episódio. De tão irrespirável, a série é um aviso, um alerta de como as democracias morrem se não estamos atentos.

Por se tratar de um alerta, um fator negativo talvez seja o fato de que seu ritmo frenético não possibilita pausa para reflexão, como se o desastre fosse inevitável. Analisar as causas, consequências e circunstâncias do cenário atual, ao invés de apenas efetuar uma alarmante constatação do caos em que nos encontramos, contudo, deve caber ao seu espectador, pois a fábula distópica está diante dos nossos olhos e, avançando, ano a ano.

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