Peguei papel e caneta para escrever uma nova versão de Romeu e Julieta. Sei que já fizeram milhares de adaptações, mas essa é uma história eterna, inesgotável, pode ser contada até fim de nossos dias nesse planeta. E o fim de nossos dias nesse planeta parece cada vez mais próximo, convenhamos.
[dropcap size=big]P[/dropcap]recisaria adaptar umas coisas aqui, outras ali. Queria dar um ar mais contemporâneo à trama. Cogitei suprimir a treta familiar e colocar outro conflito que os impedisse de passar a vida juntos, em paz com as contas a pagar e a vida cotidiana das grandes cidades, ainda que as contas a pagar e a vida cotidiana das grandes cidades não nos permitam passar a vida em paz.
Abri mão dos sobrenomes Montéquio e Capuleto. Silva e Souza deixariam tudo mais compreensível. A conexão dos leitores com meu novo romance seria grande e ele poderia ser adaptado para o cinema ou uma peça circulando pelos teatros do estado.
Me concentrei e fui colocando as ideias no papel. Na minha versão, Romeu é um bolsonarista dos mais fanáticos e expressa seu sentimento de novos tempos em dezenas de grupos de WhatsApp desde as eleições. Neles e para eles encaminha mensagens contra a esquerda [highlight color=#FF0000 ](e o PT, hein?)[/highlight] e os “jornalistas” (sempre usando aspas, evidentemente), repete termos como ideologia de gênero, mamadeira de piroca e gringo casado com outro homem cúmplice dos hackers criminosos, ri do mimimi do politicamente correto, entre outras coisas (por falta de espaço e de Dramin, não vou reproduzir todas as mensagens de Romeu nesta e em outras redes sociais).
Julieta é uma indignada com os rumos do Brasil desse governo. Cursou faculdade com uma bolsa do ProUni, volta e meia bate boca no Facebook, abomina discriminações diversas, a cada dia se sente mais sufocada com as queimadas na Amazônia, fica de cara com cada novo escândalo limpo com os panos passados pelos bolsonaristas, se orgulha de ser da resistência aos tempos de retrocessos, não passa um dia sem compartilhar notícias absurdas de tempos absurdos. Diz que não é [highlight color=#FF0000 ]lulista ou petista[/highlight], chorou no segundo turno de 2018, cita o golpe parlamentar de 2016 como o começo do fim dos tempos e acha graça quando a chamam de comunista. Tem uma camisa com o rosto de Marielle Franco estampada e faz troça da pouca inteligência dos minions.
Em um sábado de garoa fina, ambos vão ao aniversário de um amigo em comum. Não sabem que vão conhecer alguém que vai mudar o rumo de suas vidas.
Nunca sabemos quando vamos conhecer alguém que vai mudar o rumo de nossas vidas.
Foram apresentados na mesa do bar e perceberam papos de elevador. Seus amigos pisavam em ovos, tinham medo de tocar em assuntos da política, sabiam que ambos eram firmes até demais em suas posições.
Quando ela contava um causo e disse ter tomado uma atitude tão imbecil quanto as do presidente, ele desconfiou e não sorriu. Romeu perguntou a uma amiga se a gatinha era uma feminista peluda. Julieta sentiu o olhar fascista e não se intimidou, criou uma casca e se aprontou para responder qualquer sandice que ele dissesse.
Foram quebrando o gelo e concordaram que ali não era lugar para discussões. Se conheceram melhor, se deram bem. Foram os últimos a sair, quando os penúltimos a sair perceberam que já era sua hora, que chegaria outra hora para os dois.
No motel, falaram pouco de política. No motel, falaram pouco. Perguntaram dos relacionamentos anteriores, e das famílias, e do passado, e do trabalho, e da vida prática. Saíram juntos na semana seguinte. E na outra, e na outra, e na outra. E no mês seguinte. E no outro, e no outro, e no outro.
Evitaram conhecer as famílias em almoços de domingo. Nelas, havia o burburinho da vergonha de Romeu namorar uma mulher que defendia essa ladroagem petista que quebrou o país e tem o maior símbolo preso em Curitiba, de Julieta ser corajosa demais por beijar a boca de quem defende discursos autoritários e contra mulheres, negros, homossexuais e outras minorias.
Continuaram saindo, compraram alianças, mudavam de canal na hora dos telejornais e só assistiam a filmes juntos. Comédias românticas, de preferência. Não liam os posts um do outro. Deviam ser indignados, perturbadores. Tampouco assumiram o relacionamento nas redes sociais.Romeu e Julieta namoram há quase seis meses, fazem planos, têm medo, se perdem, se acham.
Parei de escrever e fiquei perturbado. Ainda não tive coragem de reler, revisar e fazer uns acertos nessa adaptação meio, digamos, esquisita. Não sei como essa história vai terminar.
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