Conto: Robson Alkmim | Ilustração: Filipe Rocha
Num velho prédio na zona central da cidade, uma senhora quase cega sentia um forte cheiro azedo vindo de seu vizinho há alguns dias e resolveu chamar o estufado zelador. O homem, que tentava puxar pela memória o rosto do proprietário do apartamento, levantou uma ficha e afirmou ser o tal escritor recluso que se instalara ali há um ano. O tal escritor, um sujeito de hábitos noturnos, parecia ser um solitário; o zelador nunca o vira com alguma mulher e a velha reafirmou tal dedução dizendo que tudo era um silêncio cadavérico, e benzeu-se em cruz.
O zelador, que priorizava pela ordem do prédio, foi ao quinto andar naquela mesma noite e já na escada sentiu o cheiro acre permeando o ar. Ficou apreensivo, como pode tanto desleixo! Tirou um pano do bolso e cobriu o nariz. Esmurrou a porta de número 33. Teve o nada como resposta. Encostou a orelha e direcionou todos os seus sentidos para dentro do apartamento. Resposta negativa de novo. Pegou o molho de chaves que tilintava enganchado em sua calça como o sino numa vaca, girou a chave e entrou.
O cheiro era insuportável. Rapidamente abriu as duas janelas que davam para o mundo. A pequena sala aparentava zelo: o sofá com travesseiros arrumados, a mesa de centro decorada com um vaso de flores de plástico, a estante de livros organizada, a televisão desligada e nenhuma sujeira. Mas o cheiro persistia e pareceu aumentar quando o zelador pesadamente entrou no quarto do escritor.
Logo, o intrépido, porém cauteloso homem, acendeu a luz do quarto e observou aquele horrível carpete bege que já pensara em trocar há anos. Reparou na cama lisa e branca como uma pista de gelo. Mesmo na paz sempre existe algum murmúrio. Assim, um barulho muito baixo e insistente lhe chamou a atenção num dos cantos do quarto; havia um computador ligado sob a mesa, que deduziu, só poderia ser de trabalho. O zelador resolveu abrir a janela do quarto e ligou um ventilador que havia sobre uma cadeira, apontando-lhe para fora. Puxou a cadeira rotatória em frente à mesa e tentou se lembrar o que havia aprendido no curso de informática que fizera duas semanas antes por insistência da filha tecnológica, modas! Ligou o monitor e sentou-se na cadeira. Tirou os óculos do bolso da camisa e os colocou com ar de orgulho por ter apertado um botão e nada explodido.
Na tela do computador, o cursor piscava sob um texto aberto no Word. O zelador movimentou o mouse e percebeu algumas páginas escritas. Cheio de deduções, concluiu que aquilo poderia ser invasão de privacidade de sua parte, mas que por força da curiosidade, estava pouco se lixando, em grande parte por culpa do escritor que deixara aquele cheiro horrível se espalhar pelo andar de seu prédio caquético, mas arrumadinho. A curiosidade venceu o odor. Jogou o texto para a primeira página e começou a deslizar os olhos sobre ele:
“Que vida escrota a de escritor, vida, vida, não-vida escrota de escritor. Todo o escritor é um pedante. Quer chamar a atenção para sua vida maldosa. Tem que criar pessoas que são o que ele jamais será! Quantos toques inúteis nesse teclado eu já dei e ninguém hoje em dia parece ter paciência para ler o que se escreve de verdade quando nós pobres escritores tomamos nossa vida nas mãos todos os malditos dias para colocar alguma ideia na sociedade e…”
O zelador contorce o rosto e se indaga se o texto vai ser aquela porcaria, que escritorzinho mixuruca! Olha para os lados silenciosos do quarto. Avista vários pernilongos próximos à lâmpada; parecem esquentar um ataque mortal sobre a careca do homem. Apesar da movimentação estranha dos insetos, ele se volta para o computador e continua o texto numa outra parte:
“Preciso sair de casa, respirar outro ar e ouvir os sons da cidade. Minha tensão se mistura a um ódio crescente. Não aguentei aquele filho da puta daquele editor me perturbando. Sei que deveria ter entregado uma primeira parte do meu livro para avaliação há seis meses, mas porra, andava nervoso desde que você… Como um artista pode viver sem uma musa? Eu não poderia. Nem é por romantizar a profissão, mas pensei na eficácia de eternizar minha inspiração. São loucuras que quando se consegue o objetivo não sabe como lidar! Queria você somente para mim. Precisava do seu cheiro, dos seus cabelos castanhos encaracolados, da espessura de seus delicados dedos brancos, das pernas onde me acostumei a deslizar a mão encontrando o centro de meus sonhos renascidos a cada penetração e encarar seus olhos verdes brilhantes, lacrimosos…”
De olhos arregalados, o homem começava a suar gordurento. Observou a Lua cheia no céu. Queria pensar criticamente no que estava lendo, mas o texto o excitara e sentiu obscuridades lascivas. Olhou para a cama para visualizar a tal mulher. Pensava se ele já a tinha visto. Lembrou-se de uma, mas talvez fosse só imaginação. Agitado, voltou ao texto:
…o bom dia, a boa noite, esfumaçaram-se no tempo em meio às nossas desavenças, tão cruéis, tão pérfidas… Tudo culpa sua, culpa nossa, culpa minhaaaaaaaaaaa… Não aguento mais chorar todos dias, a fome voltou, preciso sair daqui, sempre alguma necessidade, sempre algo que preciso a mais, essa paranóia, queria deixar acabar a história, mas sou obcecado, nada é tão limítrofe assim, só a morte, preciso viver pra te cercar de cuidados…”
“…você se lembrava do nosso primeiro encontro num cinema, na fila, isso, você deixou cair um saco de pipocas no chão, foi uma confusão, eu acabei te surpreendendo trazendo um outro saco, sua emoção, seus olhos levantando, um quase sorriso vermelho, as pipocas estalavam na boca como meus ossos… como é bom quando nada ainda começou, está tudo lá, virgem, sem mácula alguma, o desejo de mais vida, do próximo…”
“…e você me acusava de egoísmo, você não queria casar nem ter filhos, eu não suportava tal ideia, você me faltava respeito, eu percebia náuseas, eu engolia sofrimentos, eu escondia meu sangue calcificando… e aquele cara, maldito, editor miserável. Vocês, naquela festa, foi a pior ideia, ter te levado, ele todo interessante… shakespeareava exibido como um galo, fazendo poesias até das moscas e seus sorrisos galináceos contidos de menina gerando ciúmes incontornáveis em meu coração, não entendo as mudanças, num dia me amava e admirava, noutro amanhecer você reparou em um sol mais brilhante e me apagou de sua vida…”
Um pernilongo pica a careca do zelador, que com um tapa esmaga o bicho. Ele observa o brilho do sangue despejado pelo inseto. Seus olhos vermelhos cansados apontavam que a hora já ia alta, de Morfeu, mas pensou que não conseguiria se entregar. Limpou a mão na calça e lambeu o pouco sangue que ficara. Sorriu elevando sua tensão. O texto produzia nele uma impressão genuína que nunca soube que poderia sentir. Seus dedos tremiam, seria melhor ir embora, decidiu terminar o texto, o último parágrafo.
“Sim, eu fiz isso para o nosso bem, assim você não me trairá, não nos trairemos, um troca justa, sua vida me pertence agora como um registro de nascimento. Te inscrevi no meu mundo em definitivo. E posso te ver a hora que desejar, mesmo que com o tempo você mude de aparência, nada importa. Você não tinha parentes, nem familiares, que vidinha vazia, mais que a minha. Sem perguntas não há respostas. A curiosidade pode matar, e aquele editor fuxiqueiro não respira mais, não tenho mais obrigação com ninguém, adquiri minha autonomia, tudo é meu, o mundo, as histórias, as inverdades que escrevo, meus parênteses, que se foda!, e você que leu esta carta, considere-se um personagem morto.”
O zelador levanta-se da cadeira ao ouvir um barulho vindo da sala. Alguém? Corre para a porta do banheiro, está aberta, entra e acende a luz. O cheiro é absurdo, não aguenta, reabre a porta e sai trôpego. Volta a colocar o pano na boca. Lacrimejando vê um corpo pendurado no box do banheiro. Uma mulher se decompõe cinza. Ele grita seco. Olha para trás e sentado na cama está o escritor, com o rosto ossudo, o olhar tranquilo e apagado. O gorducho não sabe se pede desculpas, se berra mais alto ou se esmurra o outro homem; acaba desabando sobre as pernas.
O escritor fecha a porta do quarto e tira de uma gaveta no armário um facão que rebrilha a luz da lâmpada. O zelador não tem forças, suas pernas desobedecem qualquer chamado de desespero, e então recebe um chute que o faz rolar para dentro do banheiro. O escritor levanta o facão e o leva até a carne do homem que estrebucha vermelhos por toda a parte.
Uma hora depois o escritor abre a porta, acende um cigarro, sua roupa banhada de sangue respinga sobre o carpete. Senta-se na cama, seu rosto entristecido não contém as lágrimas. Uma mulher sai do banheiro e carinhosamente toca seu ombro, diz-lhe que é hora de ir embora. Ele balança a cabeça, ela insiste, é melhor, é melhor, venha comigo, você será salvo.
Ele aceita. Arrasta seu corpo para o computador e digita:
“Fim.”
Vai até a janela, imagina asas saindo de suas costas, a sensação de liberdade lhe toca o rosto numa brisa suave providencial para levá-lo para muito longe. Ele se ergue no parapeito e pula. A mulher o segue e os dois viajam pelo céu em direção à Lua.
À entrada do quarto, a senhora quase cega chora emocionada, porque vê nitidamente o casal voando sobre seus destinos.
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