RGB-SOULART-ON-THE-ROCK

 Conto: Robson Alkmim | Ilustração: Filipe Rocha

Alguns dias não funcionam. Lívia sabia que o dia dela não havia funcionado. Uma mulher jovem, bonita, divertida, independente, ficar em casa numa sexta-feira à noite não estava entre seus planos durante toda a semana. Poderia ter saído para dançar com as amigas, paquerar, viver segundo seu código de conduta condizente com sua idade. Afundada em sua cama, comendo uma pipoca light feita no micro-ondas, tomando um refrigerante que fazia com que ela se sentisse estufada rapidamente, era um castigo que se autoinfligia por confiar demais nas pessoas próximas. Sua punição era sádica, de certa forma conseguia tirar algum prazer ao assistir a mais um programa sobre aves do Pantanal no Globo Repórter, enquanto ao seu lado lia no seu notebook os esdrúxulos comentários no Twitter a respeito dos animais que eram exibidos na televisão. Pensava que pessoas naquela situação deveriam ter tido um dia péssimo como ela, ou que fossem adolescentes, ou completos inúteis. Imaginou então como seriam os perfis de quem assiste temas como: dinheiro (como poupar), viagens (como torrar) e doenças de todos os tipos inimagináveis. Pensou, no último caso, em sua mãe hipocondríaca que não perdia um programa sobre saúde e ainda enchia o saco de todos em casa para acompanhar, já que ela tinha mãos lentas para anotar todas as dicas que um repórter sorridente lhe passava antes de um comercial uma aspirina- resolve-tudo, com um jingle cantado por um cantor sertanejo com voz de galo no matadouro.

Enquanto seus finos dedos se engorduravam dentro do saco de pipoca e sua boca salgada disparava alguns suspiros, a televisão lhe prometia mostrar o ritual singular de acasalamento das garças-sei-lá-o-quê. As aves, com suas perninhas finas, quase transparentes, lembraram-lhe as pernas de sua amiga Milene, a maldita segundo Lívia, que se interessara pelo mesmo rapaz que a nossa tombada heroína havia trabalhado com afinco durante quase um mês para que o cara lhe convidasse para sair.

Naquela mesma sexta, na faculdade, Lívia teve um acesso de raiva roxa que não sentia há muitos anos, quando seu irmão atirou sua boneca pela janela do apartamento onde moravam e a pequenina viu sua companheira estraçalhada por um caminhão do lixo na rua. O seu irmão levou um chute nas bolas mais certeiro do que qualquer coisa que ele haveria de chutar na vida.

Milene teve a coragem de convidar o rapaz para sair e o rapaz teve a coragem de esquecer que havia combinado de sair com Lívia. Resultado: ele levou um chute certeiro no intervalo das aulas. Ela se mandou para casa, mesmo tendo uma prova chata de Economia para fazer.

Lívia teve vontade de chorar quando viu duas garças, um macho e uma fêmea, se bicando no que parecia ser uma tentativa de relacionamento mais sério, ao contrário do que havia sonhado de que, naquela mesma hora, estivesse beijando o rapaz agora dolorido ou quem sabe morto. Ela teve medo do segundo pensamento. Ensaiou mentalmente mandar um e-mail de desculpas a ele e um outro esculhambando Milena. Mas seu orgulho não deixou. Não se rebaixaria a um nível animalesco. Acabou entrando no Facebook para ver se alguém estava on-line. Ninguém. Terra deserta. Nem fotinha de bebidinha, nem FourSquarzinho num barzinho, nem likezinho bestinha. As amigas talvez não quisessem se mostrar, pensou com caretas. Na televisão, viu a cena de uma garça-macho dançando para uma fêmea, agitado, mas paciente, seu relacionamento dependia de seu charme.

Lívia desligou o celular. Começou a sentir medo de outra situação vivida naquela sexta dos infernos. Seu estômago resolveu conversar com ela, sentiu-se enjoada.

À tarde Lívia discutiu com uma cliente que ficara desesperada ao saber que o vestido amarelo hor-ro-ro-so que ganhara de seu marido era muito apertado e que não tinha peça de reposição na loja. Lívia pedia calma, pedia água, pedia assento, pedia compreensão, mas a mulher, irredutível, batia os pés e ameaçava processar a loja, a vendedora, o gerente, o dono, o shopping, a cidade, até o mundo se fosse preciso. Foi quando Lívia disse sem pausas para consciência: “Eu acredito que seu marido não notou quando a senhora comeu todo o bolo e o pernil assado da sua festinha de aniversário não é? Pra chegar aqui pesando dez quilos a mais eu realmente absolvo seu marido de qualquer culpa. O problema é a senhora ter acumulado mais gordura que um urso antes de hibernar no inverno e vem aqui descontar em mim que já não tô boa hoje!” Lívia agitava seu cabelo belíssimo para provocar ainda mais a ira da mulher. Exibiu sua cinturinha seca que haveria de ser atacada pela pipoca noturna, e cravou seus lindos olhos azuis cintilantes sobre a mulher miúda e espaçosa que começara a chorar antes do gerente da loja, do mesmo tamanho que ela, chegar e carregá-la para dentro de seu escritório, sem antes se voltar para Lívia e mostrar-lhe o pescoço sendo degolado. Putz, acho que fui despedida mesmo e por injusta causa, conformou-se. Religou o celular.

O problema da loja só poderia ser resolvido na segunda-feira, era seu final de semana de folga, tudo planejado com o desejo ardente de quem não se apaixonava há muito tempo. Mas pela manhã, antes de chegar ao trabalho, teve que penetrar num metrô onde nem uma garça conseguiria espaço. Logo notou um sujeito que carregava uma mochila nas costas (desses imbecis que nunca carregam a mochila na mão) que ia de um lado para outro roçando suas partes funcionais na bunda de Lívia, que acompanhava encarando o sujeito, e este disfarçava olhando para o mapa das estações. Num determinado momento, o cara estacionou atrás de Lívia, e ela pode sentir todo o peso desagradável de abuso que sofria. Ela deslizou sua bolsa no colo de uma moça que estava sentada e girou o corpo para dar uma cotovelada no peito do cara juntamente com um grito que teria assassinado qualquer ave no ar a quilômetros de distância. Todos no vagão olharam espantados para Lívia e o cara se afastou descendo numa estação cabisbaixo, com a mão no peito e um sorrisinho sarcástico que deixou Lívia mais enfurecida ainda. Ela pegou a bolsa do colo da mulher e desceu na estação, que não era a que ela desceria, e perseguiu o sujeito que corria sacudindo sua mochila vagabunda. Não o alcançou. Ficou plantada na plataforma, esbaforida e humilhada, observando seu agressor subir as escadas. Filho da puta covarde! Gritou desta vez para dentro de si mesma com os punhos cerrados.  Sentia que o dia não começava nada bem e esperou outro trem. Quando ele veio, Lívia entrou e se encostou na porta do vagão, também lotado, e teve a impressão de que todos os homens a observavam em seu uniforme azul da loja. Sentiu nojo.

Rememorando tais circunstâncias de seu dia malogrado, ainda vagava sua mão pelo pacote de pipocas onde sobrara alguns caroços. Começou a sentir um sono triste, daqueles que vêm com a estafa e a raiva após um dia dilacerante. Enquanto na televisão as garças iam pra lá e pra cá no céu em sua liberdade inalcançável para um ser humano, Lívia jogou o pacote no chão, pousou a lata de refrigerante numa mesinha ao lado da cama, desligou novamente o celular e fechou o notebook.

Por costume programou a televisão para desligar mais tarde e nossa heroína foi fechando os olhos. Não sabia, como nunca se pode saber, que seus sonhos noturnos seriam preenchidos por penas de garças sobre sua cama onde ela se tocaria de desejo pelo rapaz com um gosto de pipoca salgada nos lábios; seria ainda observada por sua amiga Milena que riria de Lívia sentada em sua cama; e a cliente da loja perto da janela que gritaria com ela enquanto seria encoxada pelo cara do metrô com a mochila nas costas com um sorriso idiota no rosto.

Na televisão, um casal de garças se acasalava em rede nacional sobre a copa de uma árvore num dia ensolarado no Pantanal.

“Semana que vem no Globo Repórter: Relacionamentos, como lidar com pessoas desagradáveis nas grandes cidades. Não perca!”

“Boa noite.”

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