Além do fato de sediar o jogo de abertura da Copa do Mundo de Futebol, São Paulo tem outro motivo para estar em festa no ano que vem, pois em 2014 a maior manifestação cultural da cidade, o seu carnaval, completará cem anos de existência. Mas, apesar da grandiosidade dos desfiles e da estrutura e importância que possuem as escolas de samba nos dias de hoje, não foi sempre que o carnaval paulista teve prestígio.

Desde a época em que Dionísio Barbosa fundou o primeiro cordão paulistano, o grupo carnavalesco da Barra Funda (que mais tarde viraria a Escola de Samba Camisa Verde e Branco), até os dias atuais, foram muitas as lutas para que o samba feito em São Paulo alcançasse o ansiado reconhecimento. E dentre os inúmeros personagens fundamentais nessa luta para a consolidação do samba e dos desfiles na capital paulista, talvez o mais importante deles seja o compositor Geraldo Filme.

Foto: Arquivo Pessoal Heron Coelho

Foto: Arquivo Pessoal Heron Coelho

Nascido em São João da Boa Vista, em 1928, e criado no bairro paulistano dos Campos Elíseos, Geraldo não poderia ter outro destino a não ser o de sambista, pois descendia de uma família que tinha a música no sangue. A começar por sua avó que lhe ensinou diversos cantos entoados pelos escravos nas senzalas, passando por seu pai, um requisitado violinista, até sua mãe, Dona Augusta, cofundadora do cordão carnavalesco Paulistano da Glória.

Nas primeiras décadas do século XX, o samba de São Paulo era predominantemente rural e caracterizava-se pelo peso dos instrumentos de percussão, onde se sobressaíam o surdo, o bumbo e a zambumba. Conhecido como “Samba de Bumbo”, tinha sua sede na cidade de Pirapora, mais precisamente durante as festas religiosas do Sr. Bom Jesus. Assim como o samba, os desfiles carnavalescos feitos em São Paulo também tinham algumas peculiaridades que os diferenciavam dos desfiles feitos no Rio. O carnaval paulistano, por exemplo, era em sua maioria feito por cordões em vez de escolas de samba, e compunham os desfiles além da corte e da figura do baliza, alas incomuns e inusitadas, como a “ala das frigideiras” – até então usadas como instrumentos de percussão – e a “ala dos metais (instrumentos de sopro)”. Infelizmente, essas características se perderam no tempo devido à influência do padrão carioca de se fazer samba e carnaval.

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Desde criança Geraldo Filme, além de ser um assíduo freqüentador das festas religiosas do interior paulista, participava ativamente do carnaval e das rodas de samba e tiririca (capoeira paulista) na cidade de São Paulo. Como atestado da sua precocidade, cabe mencionar que com apenas dez anos de idade, depois de ouvir seu pai dizer que samba bom era o samba feito no Rio e que paulista não sabia fazer samba, compôs sua primeira música, Eu Vou Mostrar, como uma resposta àqueles que desdenhavam da qualidade do samba paulista.

Em 1968, a exemplo do que já ocorrera no Rio de Janeiro, o governo oficializou o carnaval paulista, com isso as escolas de samba passaram a receber verba pública para os seus desfiles, e os cordões, devido à falta de incentivo, sucumbiram. O Vai-Vai e Camisa Verde e Branco foram os últimos cordões a se transformarem em escolas de samba, resistindo até o ano de 1972.

A partir da oficialização do carnaval paulista, a atuação de Geraldo Filme começou a ter maior destaque. Já em 1969, gravou ao lado de Carmélia Alves o LP Escolas de Samba de São Paulo, onde interpreta os sambas das 12 agremiações que disputaram o carnaval daquele ano, incluindo o samba enredo de sua autoria História da Casa Verde composto para Escola de Samba Unidos do Peruche, a qual foi um dos fundadores.

Peruche desfilando com samba de Geraldo Filme foi um acontecimento que se repetiu por mais três anos. Em 1970, em parceria com B. Lobo, Festa do Rei Café:

Em 1971, Tradições e festas de Pirapora:

E em 1972, Chamada aos heróis da independência:

Porém, não foi só a ala dos compositores da Unidos do Peruche que teve a honra de tê-lo como integrante. A escola que sua mãe ajudou a fundar, a Paulistano da Glória, desfilou com sambas de Geraldo entre os anos 1974 e 1980. Em 1974, Tebas, o escravo:

Em 1975: Histórias de um Preto Velho; 1976: Porto Feliz, Berço das Monções; 1977: Oração em Tempo de Festa:

1978: MMDC – Epopéia de Glória:

1979: Destino Marcado:

E em 1980: Que Gente é Essa:

A Vai-Vai foi outra que teve a poesia de Geraldo em seus desfiles, mas a história dessa relação merece um destaque. Tudo começou quando a escola decidiu que o enredo para o carnaval de 1976 seria sobre o poeta pernambucano Solano Trindade. Ao saber da noticia, Oswaldinho da Cuíca, membro da ala dos compositores da Vai-Vai e amigo de Geraldo desde a época em trabalharam juntos no Teatro Popular Brasileiro (fundado e administrado por Solano Trindade), convidou-o para fazer o samba tema para o desfile. Porém, segundo o regulamento da escola, para concorrer ao samba-enredo era necessário fazer um samba de quadra antes. Foi quando Geraldo compôs nada mais, nada menos, que aquele que se tornaria um dos hinos do samba paulista, Tradição (Vai no Bexiga pra ver).

Depois de cumpridos os pré-requisitos estipulados pelo regimento interno da escola, Geraldo competiu e ganhou a disputa ao samba-enredo daquele ano, e assim, o Vai-Vai sagrou-se vice-campeã do carnaval de 1976 com o samba Solano Trindade, O Menino do Recife:

Como se nota, foi intenso o envolvimento de Geraldo com as escolas de samba paulistas, até mesmo a pequenina Colorado do Brás, da qual ele também foi diretor de carnaval, desfilou com sambas seus. Ademais, o compositor também integrou a Camisa Verde e Branco, foi diretor da União das Escolas de Samba Paulistanas – UESP (de 1977 a 1979) e conselheiro diretivo de diversas outras agremiações. Em suma, um legítimo cidadão samba da cidade de São Paulo, respeitado por todas as escolas da capital, interior e litoral.

Mesmo sendo um dos mais importantes, se não o mais importante sambista paulista, Geraldo Filme foi completamente ignorado pela indústria fonográfica. Somente devido a um convite do dramaturgo Plínio Marcos é que pela primeira vez entrou em um estúdio para interpretar seus próprios sambas. No disco de 1974, Nas Quebradas do Mundaréu, além de canções dos bambas Zeca da Casa Verde e Toniquinho Batuqueiro, foram registradas cinco músicas de sua autoria. Um disco inteiro dedicado exclusivamente às suas composições só aconteceu em 1980, fato que nunca mais se repetiu.

Teve um especial envolvimento artístico com Clementina de Jesus, quando ela defendeu o seu samba A Morte de Chico Preto no festival Abertura, da TV Globo, realizado em 1975. Mais tarde, em 1982, essa parceria resultou no LP Canto dos Escravos, em que Geraldo, ao lado de Clementina e da Tia Doca da Portela, entoa os cânticos que aprendera com a avó. Também atuou no teatro junto com os já mencionados Solano Trindade e Plínio Marcos, sempre defendendo as tradições do samba rural e do povo negro.

De uma maneira geral, os sambistas paulistas não têm o merecido reconhecimento. São poucas pessoas que conhecem a obra de gente como Henricão, Oswaldinho da Cuíca, Seu Carlão do Peruche, Seu Nenê, Talismã ou Ideval Anselmo, só pra citar alguns. Com Geraldo Filme não é diferente, pois embora tenha dedicado sua vida em prol do carnaval paulista, possui pouco prestígio por isso, já que nem mesmo o sambódromo do Anhembi recebe seu nome. Pois é, como diz em uma de suas músicas: “sambista de rua morre sem glória depois de tanta alegria que ele nos deu”. E foi assim, “sem ter placa de bronze”, que faleceu no dia 5 de Janeiro de 1995, deixando de luto não só o Bexiga, mas toda a paulicéia.

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