Conto: Robson Alkmim | Ilustração: Filipe Rocha
Não falarei dela. Talvez eu pense ou invente outras coisas para não me lembrar. Se há dor é porque a lembrança existe, que seja! Então não serei aquele chato que fica se lamentando em público (internet) para conseguir um carinho miserável, não sou mendigo afetivo. Eu sei, vivendo e aprendendo, acumulando experiências, mas num determinado momento na vida em que nada mais poderia acontecer de surpreendente nos acontece, e logo depois, nada acontece, fica na mesma. A experiência explode em mil pedacinhos e você desiste de catar aquelas migalhinhas do velho coração de pedra. Ah, lamentações, mas não falarei nadinha dela… uma mulher, sim, uma mulher como outra qualquer: dois braços, duas pernas, dois seios e ah, não era tão normal assim, senão eu… falarei sobre outra coisa, é que eu odeio praia, não as belezas naturais, tudo acho bonito, o sol escandante, a areia ardendo e queimando os pés, grudando na bermuda, nas costas e nos ossos, aquele mar indo voltando indo voltando indo voltando e a linha do horizonte, horizonte uma ova porque é oval, tudo ilusão de ótica e lógica, isso sim, praia é ilusão, quem diz que relaxa numa praia é um louco natural. Eu mesmo enlouqueci quando aceitei o convite duns amigos. Ah, se eu soubesse, se eu não tivesse me arriscado… A previsão do tempo falava numa grande possibilidade de chuva no litoral, eu me agarrei a tal ideia, meus amigos não, confiaram na experiência do Hortêncio, o surfista velho, que disse “Brother, vai tá maral, autax ondax, cabuloooso!”. Enquanto ele sacudia um hang loose ao sol encoberto por grossas nuvens de garoa da cidade, eu e mais quatro amigos entrávamos no carro. Eu imaginei a cara do surfista velho quando a chuva torrencial banhasse aquele monte de rostos tristes e bêbados de açaí nos calçadões da praia, putos pela água de cima, com aquela visão do mar: um paredão cinza e melancólico. Achei linda a cena. Se tivesse chovido não a teria encontrado, não teria sido humilhado… mas, à medida que o carro descia a serra na manhã daquele sábado, eu sentia o ar mais abafado. Como se estivéssemos sendo perseguidos por alguma nave espacial, fortes canhões de luz nos cercaram e reparei que as nuvens se dissipavam rapidamente, traíras! Desci ao litoral por tédio, pra esquecer um pseudo-amor platônico, uma dor de cabeça e uma dívida no aluguel do apartamento que divido com três peixes dourados, um girassol e um fóssil. Só o fóssil não me enche o saco com gastos. A praia estava conforme meus pesadelos, linda, sob um céu insuportavelmente azul. Por ela se espalhavam pessoas de todos os tipos entre suas convenientes graças ou desgraças plásticas. As massas impudicas atravessavam a avenida marginal com tanta alegria e tantos dentes e tão pouca roupa que meus amigos não se continham e gritavam a cada mulher que atravessava suas visões. Eu me abaixava no assento do carro cobrindo o rosto, não queria queimar o meu filme e me tornar um comparsa naquela profusão vocabular desmedida de elogios que, se eu fosse mulher, tacaria o meu pote de açaí ou uma lata de cerveja na cara deles… talvez não, tudo é muito caro na praia. Enfim, estacionamos próximo a um hotel de estrangeiros, tão famoso que não me lembro de seu nome, e fomos para o bar, os caras queriam se abastecer. Sou da cevada, não do açaí, bebemos todos. Fico pensando, se eu não tivesse enchido a cara no bar logo de manhã, teria eu cometido tal infortúnio tragicômico à tarde? A parte trágica para mim, aos meus amigos, o cômico. Não era nem meio-dia e todos estavam calibrados e dispostos a esquentar o pé na areia e dar um mergulho. Menos eu, sou um chato, não consigo relaxar nas oportunidades mais convidativas. Tonto e embaralhando as palavras eu disse que ficaria andando pela praia. Peguei minha mochila no carro, coloquei os óculos escuros e fingi que estava tudo bem. Meus amigos foram nadar e eu procurei pela primeira sombra que encontrei, não havia nem uma brisa, estava enjoado, precisava comer algo grande e salgado. Desviei-me das pessoas pela calçada, uma tortura, cheiro de humanos ensolarados, cheios de areia, lábios com água de bica, cabelos molhados de chuveiros públicos, arrastando chinelos Rider com bandeirinhas do Brasil e balançando cangas pra todo lado. Entrei numa lanchonete bonitinha lá por perto para me livrar daquela onda humana assustadora. E dá-lhe espetinho de carne e de camarão, pastel de camarão e de carne. Depois de comer e sentir o enjoo passar, o atendente com uma cara de quem não se impressiona com mais nada na vida, veio me entregar a conta que eu havia pedido tranquilamente. Bêbado come tanto quanto bebe, e chora na mesma proporção quando as coisas não vão bem. Eu não tinha dinheiro pra pagar a conta. Não poderia deixar o lugar sem pagar, havia muita gente, mas os atendentes estavam de prontidão para pegar safados como eu na primeira corridinha pra fora. Imaginei-me sendo abalroado pelos dois seguranças de proporções hercúleas que guardavam aquele santuário da comilança. Queria chorar ou já chorava. Eu estava semipronto, semidecidido e semiconvencido de que teria que entrar no banheiro e sair por alguma janela se não tivesse grades (oh, prisão!), quando apareceu uma mulher na minha frente fazendo gestos estranhos mas amigáveis, com o corpo mediano e bem aprumado sob um vestidinho azul florido e sandálias, e uma carinha simpática que usava um Ray-Ban, original, presumi. Ela tirou seu óculos e ai ai ai, não deveria estar ali, naquela hora, talvez tivesse sido melhor morrer pelas mãos pesadas dos seguranças… ela era a Ká, uma velha amiga de escola que eu não me lembrava mais o nome, somente o apelido. Ela me reconheceu e sentou-se na minha frente. Posso resumir: ela me contou sobre sua vida toda desde o primário. Nada de espetacular, a não ser o fato de ter se tornado herdeira, após a morte do pai, da empresa de gás lacrimogêneo que, segundo ela, exportava gases para todo o mundo, e a demanda era grande. Achei estranho mas não opinei. Pude perceber que usava anéis de ouro nos dedos, entre outras jóias. Pensei no perigo daquilo tudo, falei a ela que deu de ombros. Ká era do tipo que não ligava ser assaltada desde que aquilo que lhe levassem fosse uma cópia do original. “Sou precavida”, ela me disse, observando-me com seus olhos verdes fosforescentes. Fiquei nervoso porque fiquei tímido demais. Durante o tempo em que eu lhe contava sobre uma abastada (só que não) vida, ela bebia uisque. Ao final do meu relato, e de vários “uaus” com um interesse que me pareceu real, ela pegou minha conta e não se importou em pagá-la, mesmo não sabendo do meu problema financeiro, e ainda me perguntou se eu continuava com fome. Um anjo, não? Na saída, toda animada com a conversa, enlaçou-me com um abraço e fiquei vermelhinho, mas tive tempo de passar pelos seguranças de cabeça erguida e os encarei como se fosse um cafetão, só não lhes dei gorjeta porque não tinha mesmo. E a Ká tinha uma pele tão apreciável que dourava à sombra. Fiz quase tudo o que ela queria durante aquele dia. Visitamos alguns lugares bonitos. Tomamos sorvete. Ela comeu açaí, eu recusei, ninguém é de ferro. Andamos pela praia coletando tudo quanto era porcaria na sola dos nossos pés. E, Ká foi nadar. Seu vestido pousado sobre a areia como um cãozinho à espera do dono. Eu molhei as canelas observando as idas e vindas das ondas e do corpo dela, úmido, quente e fresco num biquíni azulzinho de bolinhas branquinhas tão pequinininho que mal cabia na Kázinha…. Lembro-me de seus cabelos longos e violetas ou roxos ou qualquer coisa tingida que deixava aquela moça de trinta com um aspecto de linda sereia. O que eu esperava de toda aquela cumplicidade? Devo ter me guiado por pensamentos indóceis, daqueles fixos e excitantes. Sob um terrível sol poente que dava um degradê ao céu, em frente a um mar azul esverdeado borbulhante, entre a orgia de barulhos das pessoas em volta, uma brisa que soprava em meu corpo como um sussurro e, tudo brilhou diferente, surtei. Ká se aproximou de mim saindo da água, ela me observava, senti-me desejado. Avancei em direção a ela, parei com a água na cintura, puxei e prendi aquela minha amiga tascando-lhe um puta beijo em seus lábios abertos de pânico. Nos segundos (três) que se sucederam, senti meu corpo petrificado, a água atrapalhava o contato de nossos corpos, mas seus grandes seios tocavam o meu peito numa explosão de felicidade incontida e nervosismo, seus cabelos avançavam sobre meus ombros, seus braços se agitavam, senti suas unhas cravarem nas minhas costelas e minha língua ser mordida. Urrei de dor e levei um empurrão. Mergulhei na água a ponto de me afogar, muito mais pelo terror do que pelo raso onde estava. Quando levantei a cabeça do mar, tossindo como um maconheiro com problema no pulmão, Ká já estava na areia, não se virou para mim, mas ainda ouviu os apupos conhecidos de uns caras totalmente loucos que não perderam a oportunidade de elogiar a moça mais bonita daquele pedaço de praia, meus amigos. Ela ainda se virou e despejou um olhar de desprezo estonteante, deixando-os mudos. Algumas pessoas à minha volta riam, sussurravam umas às outras, umas senhoras balançavam a cabeça, deviam achar que eu era o pior monstro possível, mas foi assim que me senti, todo machão é burro, mesmo aqueles que simulam macheza. Meus amigos tiraram sarro de mim. Percebi que a ferida na língua não era grande coisa, havia muito mais gosto de batom na minha boca do que sangue. Um dia cheio, com certeza. Logo depois de entrarmos num bar para uma saideira para comemorar que nenhum dos meus amigos conseguiu pegar uma mulher (também com aquela tática nem pinguim pegariam), Hortêncio só levou caldo no mar, velho pero bundão. E o tempo começou a fechar, nuvens cinzas e grossas rapidamente se aglomeraram e choveu torrencialmente com efeitos especiais. Agora sim, como eu esperava, apesar da tristeza. Juro que quero esquecer tudo isso, tive que falar sobre ela, e só contei a vocês pra aliviar minha consciência dolorida, talvez eu seja um grande mentiroso, também.
[popup_anything id="11217"]