Alex Chacon, artista gráfico chileno, costumava dizer que o bandolinzinho do trio elétrico baiano só podia ser tocado pelo diabo em pessoa. Não mais que ser tocado por algo que não é pessoa nem Diabo, Deus nem animal, a música de Caetano soa como música no seu sentido mais intrínseco e belo possível. Arrepia Deus. Arrepia o Diabo.

Quinta-feira (11/04) foi o dia em que Caetano estreou seu show Abraçaço em São Paulo e mais bela apresentação, não teria como. Ao adentrarmos no espaço, nos deparávamos com um lindo cenário de Helio Eichbauer, repleto de obras do pintor soviético Kazimir Malevich – que completa 100 anos este ano. De repente, uma voz, de maneira austera, apresenta o show. Não mais que de repente, entra Marcelo Callado, Pedro Sá, Ricardo Dias Gomes (os excelentíssimos músicos) e a força da natureza, aos 70 anos, Caetano Veloso.

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Dificilmente alguém terá, acredito, a força e o poder de Caetano ao modernizar a tradição e tradicionalizar o moderno – talvez Chico Buarque de Hollanda consiga, mesmo que de maneira mais contida. Ao entrar, Caetano abre os braços e um sorriso, um dos mais bonitos, ao tempo em que A Bossa Nova é foda começa a ser tocada. A contundência dos versos, principalmente dos citados no refrão (que dão nome à música), eram cantadas como gritos de guerra pelo público. A potência e a limpidez da voz de Caetano foram sucedidas pela serenidade da subseqüente, a bossanovista Lindeza, do álbum Circuladô, de 1991.

Então, o grande leonino ataca com outras três joias de seu disco mais Abraçaço. Em Quando o Galo Cantou, não apenas a letra – com versos excepcionalmente bem feitos como “mas o sol penetrou entre os pelos brasis” – mas também a música reforça o magnânimo melodista que é Caetano. Com Um Abraçaço, o abraço mais terno que alguém pode sentir (salvo ressalvas, é evidente) os integrantes da bandaCê se perfilam atrás de seu muso, tranformando-o em um homem de vários braços, como um Ganesh, para receber e distribuir seus abraços. E o afeto ainda sobra em Parabéns, que ele tradicionalmente dedica o astral mega bom, giga bom, terá bom aos aniversariantes da noite.

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No show que marca o fim da trilogia com a bandaCê, Caetano tocou todas as faixas de Abraçaço, menos Gayana, música de Rogério Duarte, e deixou de lado os temas de Zii e Zie (2009), mas interpretou algumas inaugurais de (2006). Deste disco, O Homem e Odeio. Aliás, em O Homem foi um dos poucos momentos em que o calado compositor conversou com a platéia. Logo após a introdução da música, Caetano entrou cantando a letra errada – o que aconteceria algumas vezes, mas, de modo algum, tirando a beleza da apresentação – e, com jogo de cintura, desculpou-se dizendo que isso nunca havia acontecido com essa música. Na nova tentativa, Caetano brincava com a voz quando cantarolava “Eu sou o homem/pele solta sobre o músculo”.

Além da conhecida capacidade de Caetano como intérprete e compositor, ponto para ele também como diretor do espetáculo, cujo ritmo e evolução da ordem do repertório funcionam muito bem, alternando momentos de euforia com momentos de introspecção. Não à toa, ele repetiu a ordem, de cabo a rabo, das canções em relação ao show de estréia no Rio. A única mudança foi feita apenas com Alexandre que deu lugar a De Noite na Cama, do fabuloso disco Temporada de Verão – Ao Vivo na Bahia (1974), com Gal e Gil – música, a qual, ele nunca mais gravara.

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De Abraçaço, assim como no Rio, Caetano mostrou o carimbó de O Império da Lei, encoxou o ar ao dançar seu Funk Melódico, preludido por Escápulário – composição de Oswald de Andrade gravada em Jóia, de 1975, derramou tristeza em Estou Triste e em Quero Ser Justo e toda densidade pedida por Um Comunista, composta por ele em homenagem a Carlos Marighella (1911-1969).

Do trabalho mais recente do baiano, ainda sobrou Vinco, na abertura do bis, com achados poéticos como “Eu que me posto exato entre teus lados/ Determino teu centro, sou teu vinco/ Finco o estandarte em teu terreno tenro/ em teu terreno tenro, em teu terreno”.

Das canções mais antigas do repertório, Caetano soube escolher muito bem Triste Bahia, do magistral álbum Transa, de 1972 – com Pedro Sá e os efeitos de sua guitarra reinventando a função do agogô no registro original da música. Em tom crescente e algo que soa muito natural, a versão ao vivo da canção é de arrepiar. Ainda sobrou espaço para Mãe, que também vem sendo interpretada por Gal Costa em Recanto ao vivo.

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 Além dela, Eclipse Oculto e a aclamada Reconvexo (com o público aplaudindo a mãe de Caetano, Dona Canô, que morrera em dezembro passado) fizeram do público ensandecido e não se importando com o ardor das mãos fervorosas. Você Não Entende Nada (canção gravada com Chico Buarque, em um pout-pourri com Cotidiano, em 1972) em tom apoteótico, foi acompanhada pela grande voz do público cantando “Todo dia, todo dia”, como Chico fizera há 40 anos. No bis, além da calmaria de Vinco, a energia de A Luz de Tieta e do rock-com-cara-de-bandaCê Outro fizeram o público sorridente e deveras em transe.

Caetano, aquele canta com a voz do coração de quem mantém toda pureza da natureza no seu canto, encantou a todos (ou quase, mas esses não contam já que queriam ouvir Sozinho ou Leãozinho) e seu abraçaço foi tão terno quanto ensandecido.

 

Fotos: Victor Bauab/Soul Art

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