Estamos no início do século XXI e há uma confusão generalizada dentro e fora da academia que faz com que toda tentativa de compreensão sobre arte se torne tanto uma tarefa árdua, e muitas vezes frustrante, quanto necessária. Essa confusão a que me refiro não determina a totalidade do fazer artístico do nosso século, mas certamente resvala em toda produção artística: literária, musical, das artes plásticas, dança e outras, interferindo e comprometendo o desenvolvimento e, portanto, os possíveis saltos que essas artes poderiam ter.

O resvalar é muito mais que meramente um reflexo, é, antes, o resultado, o efeito, na produção artística, da incompreensão sobre a arte, o mundo e o homem contemporâneo, como afirma Mário Pedrosa, dentre outros trabalhos, no seu ensaio “Mundo em crise, homem em crise, arte em crise”. É então a expressão particular de um caso geral que vem assolando artistas, críticos de arte e a todos os homens e mulheres a quem a arte se destina. Homens e mulheres que são impedidos de sorver o que a arte, tanto do passado quanto do presente, pode oferecer por conta dessa incompreensão e confusão generalizada.

A confusão resulta de duas visões complementares que pairam como fantasmas e nublam o olhar: a visão que defende que a arte tem que possuir um conteúdo político para ser interessante e a visão que defende uma arte de vanguarda e inédita a todo custo.

A dinâmica dessas duas visões não é dividida em pólos como pode parecer, mas antes complementares.

I – Arte Política

Fortemente influenciada por movimentos sociais e em certa medida um por um “Jdanovismo” anacrônico, essa perspectiva entende que a arte é um meio para a realização de um fim. A defesa dessa visão consiste da má compreensão sobre o que é arte e surge da politização de toda ação humana. O homem é sim um animal político, então a arte é política enquanto arte e não tem necessidade de “politizar” seu discurso, tema ou objeto, para sê-lo. Se o fizer estará empobrecendo suas possibilidades de realização e portanto estará perdendo sua força estética e como consequência a força política real que possui potencialmente. Como disse Graciliano Ramos: “A arte é revolucionária em essência”.

É um erro colocar a mensagem política a frente do construto estético e significar a arte pelo conteúdo político que carrega. Isso não é sorver arte, é defender uma visão política de mundo. Esse erro é análogo ao erro de se apreciar um quadro, por exemplo, pelo seu tema, o tema é o tema e só, o que o artista vai fazer de seu tema é o que vai tornar o objeto artístico interessante ou não. O fato de eu gostar de flores não significa que todos os quadros com flores serão bons. No entanto, quando aprecia-se ou defende-se que a arte deva ter uma mensagem política, temos problemas ainda maiores porque nessa afirmação perdemos o em si da arte, diferente do que aconteceria se exigíssemos que todos os pintores pintassem flores.

Como propaganda essa postura, postura de exigir da arte uma mensagem política, pode servir, uma vez que a propaganda política tem um objetivo em si mesma que é o de difundir uma ideia. A difusão dessa ideia pode, também, ter uma forma artística, ou seja, a arte pode ser o meio que carrega tal mensagem, no entanto, quando o faz, perde seu sentido em si mesma e vira o meio para um fim externo. Não há aqui um julgamento sobre esse tipo de utilização da arte, todavia, é fundamental saber ler essa diferença e reivindicá-la dentro do que se propõe: propaganda.

 Alexander Rodchenko e sua experiência de luz, sombra e perspectiva. Trabalho anterior aos retratos de exaltação política – Levels – 1929           

Alexander Rodchenko – Trabalho já comprometido pela necessidade de propaganda política.

Marching column of the Dynamo Sports Club – 1932

A dificuldade central no que tange o discernimento entre arte e propaganda é o fato de os militantes e ativistas não serem sensíveis à arte como linguagem com significado próprio, e por serem insensíveis a isso, buscam um significado externo para validar a qualidade de uma suposta obra de arte. Isso é um grande e sério equivoco.

Um grande e sério equívoco porque seus desdobramentos são catastróficos. Um dos efeitos catastróficos é cairmos em um reducionismo das contradições que envolvem a sociedade de classes em que vivemos e atribuirmos a toda manifestação pretensamente artística que se desenvolva ou cresça na periferia, que cresça por meio da ação das pessoas que vivem nessas regiões e que, portanto, pertencem a classe trabalhadora, o nome de arte ou grande arte.

O nível de perversão não para por ai. Atribuirmos a essas manifestações o título de arte legítima do povo, ou qualquer coisa que o valha, não é somente enaltecer o resultado degenerado de uma sociedade degenerada (a sociedade capitalista em que vivemos), como é negar a possibilidade de compreensão do que é arte e, então, poder experienciá-la. Esse discurso muito popular na atualidade que tem o intuito de valorizar o que se desenvolve na periferia (que deve ser valorizado mas com a perspectiva de superação e não de estagnação), e portanto, fortalecer a cultura dessas regiões, tem efeito contrário, é altamente reacionário e retrogrado pois confina pessoas dedicadas, e sinceramente interessadas em desenvolver um trabalho artístico sério, à ignorância. A arte é fruto de um processo histórico e sendo assim é necessário que o artista conheça as técnicas e possibilidades desenvolvidas ao longo da história para que possa fazer uso e ampliá-las. A réplica a esse parágrafo poderia ser a fala que afirma a necessidade de incentivar a arte do povo, a arte do trabalhador, a arte genuinamente proletária, mas o fato que essa arte não há.

A arte proletária só será possível uma vez que o modo de produção capitalista seja superado, mas isso não bastará, isso não criará imediatamente as condições para o surgimento da uma arte nova que seria o resultado da superação da arte burguesa. A única maneira de superar a arte burguesa é a dominação de seus aspectos teóricos e técnicos em uma organização social que tenha superado o capitalismo. Ao reivindicarem as manifestações das periferias, do trabalhador e do proletário, simplesmente porque seu conteúdo político e o tema abordado dizem respeito aquela realidade social, estamos primeiro atribuindo valor a arte como meio para um fim externo e, em segundo lugar, estamos assumindo que a sociedade revolucionária se erigirá não sobre o acúmulo histórico de toda cultura e sim sobre uma tábula rasa. As duas ações se convertem no mesmo efeito: negar o a dinâmica da história, e isso meu caro leitor… Isso não se pode.

II – Arte Contemporânea de Vanguarda

“The Artist is Present” Marina Abramovic MoMA – New York © 2010 Scott Rudd

Os grupos que defendem as vanguardas são grupos que reivindicam, na ampla maioria das vezes, uma arte nova. Essa busca pelo inédito se configura em obras algumas vezes realmente novas, todavia, nunca artísticas. Essa vanguarda confunde o ato humano de se expressar com um tipo específico de expressão, a expressão artística

Criam nesse sentido expressões que não possuem significado, ou relativisando o significado das categorias envolvidas em uma determinada manifestação artística, tudo se torna possível e todos os significados são aceitos. Ora, se todas as interpretações são válidas e verdadeiras, nenhuma é.

Isso não significa que tais vanguardas não se envolvam nas suas produções trabalhando longas horas, contudo, a arte não se mede apenas pelo trabalho que deu sua realização ou pelo tempo gasto, embora isso seja um fato que explicite muitas vezes o que fez um determinado artista chegar a um resultado específico. Arte se mede pelo resultado objetivo que o artista atingiu com o seu trabalho, e esse resultado é a relação que estabelece com a história das técnicas e procedimentos que empenhou para a realização.

O processo de mistificação é tão intenso nesses nichos que o artista é quase visto com um xamã, em realidade isso é fruto de uma fetichização do artista e sua obra por motivos mercadológicos. O critério é o exotismo e ineditismo da “obra”.

Marina Abramović é um ótimo exemplo disso. Como afirma Avelina Lésper: “Frívolas son las exposiciones de selfis, los performances, las obras de artistas como Marina Abramovic, la cama sucia de Tracy Emin o los puntos de Hirst. La frivolidad es pretenciosa y fatua, y así es el arte contemporáneo VIP, vacío e inflado con dinero.”.

“My Bed” de Tracey Emin. Vendida por aproximadamente 10 milhões de Reais em leilão na Inglaterra.

Abramović cria uma mística em torno de si que supera o valor da obra por ela criada. A obra de Abramovic, sem sua presença não existe ou perde todo o impacto que poderia criar. Sua obra por conta da mística e do apelo a fé das pessoas como em “Espaço Além – Abramovic e o Brasil”, ou por conta da apelativa maneira que explora as relações humanas como em “The Artist is Present”, que foi realizada no MoMa em 2010, é capaz de emocionar por questões que não estão ligadas a arte. É apelativa e vulgar. Talvez suas obras tenham mais valor no que tange à psicologia do que à arte. Não é porque algo emociona que é necessariamente arte. Como já afirmei, a livre expressão não é arte.

É possível e usual que se criem significados para obras das chamadas vanguardas e que esses significados sejam atribuídos a obra, contudo, esses significados embora tenham sentido em si, não tem absolutamente nenhuma relação com a obra, e quando tem, esse é apenas um dos significados que lhe podem ser atribuídos já que a obra por ser vazia serve muito bem como receptáculo oco que tudo recebe.
Temos ai mais um problema: Se a arte é receptáculo oco, o seu significado dirá mais sobre aquele que diz do que sobre a arte mesma. Então, além de tudo, não é autônoma. Está mais para um recurso psicanalítico como o teste de Rorschach. Um borrão de tinta não é arte.

Nesse sentido, o que há em comum entre as duas visões? Ambas procuram um significado na obra que não está nela. Ambas criam obras de arte ausentes de significado artístico, ambas criam uma obra de arte alienada de seu papel, ambas criam uma arte que não se realiza em sim mesma.

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