Com projetos sociais que atendem a todas as idades, o ponto de cultura Casa Mestre Ananias, em São Paulo, é um reduto que defende a preservação das culturas orais e a ancestralidade afro-nordestina por meio da capoeira.

Pensar no bairro da Bela Vista, o famoso Bixiga, é um convite para uma série de ligações culturais, como a comida e a tradição italianas, os bares, a boemia etc; mas não se pensa, de maneira geral, na capoeira. Só que, para o pessoal da Casa Mestre Ananias, onde o jogo inspira todas as atividades, não é bem assim.

— Foto | Yuri De Lucca Dinalli

Trazida de África no porão dos navios, onde atravessou, junto de seus camaradas — os chamados malungos —, mares bravios até aportar em terras tupiniquins, o jogo de roda que se confunde entre dança, expressão corporal; e luta, arte de guerra, foi utilizado pelos escravos fugidos e libertos como forma de proteção e combate, dada a potência de seus golpes e a malícia da sua ginga.

Velha conhecida dos estados da Bahia e Rio de Janeiro, em São Paulo a capoeira se popularizou por volta da década de 60, trazida por mestres que migravam para a capital em busca de espaço e encontravam o mesmo que nos outros ambientes: a repressão. Enquadrado como uma das práticas da “vadiagem”, prevista no artigo 59 do antigo código penal, na maior capital do Brasil o jogo se desdobrou em um outro estilo, a “tiririca”, como ficou conhecida a brincadeira de pernadas disseminada por sambistas, malandros e engraxates que conviviam no Centro e em alguns bairros das zonas Leste e Norte. Desses mestres que a São Paulo chegaram, trazendo a capoeira em suas bagagens, alguns ganharam notoriedade por encabeçar movimentos de resistência cultura.

ANANIAS

Retratos de Mestre Ananias / Foto | Yuri De Lucca Dinalli

Baiano natural de São Félix, às margens do Rio Paraguaçu e distante 110 km de Salvador, Ananias Ferreira, o popular Mestre Ananias, nasceu no ano de 1924 e, ainda muito jovem, migrou para Salvador em busca de uma nova vida, onde foi acolhido por Valdemar da Liberdade, um dos grandes mestres capoeiras da região. A partir daí, adentrou de vez este universo místico e aprendeu as malícias do canto, do toque e do jogo, se tornando, mais tarde, uma grande referência da cultura afro-nordestina. Sua chegada em São Paulo data da década de 50, onde, junto de Plínio Marcos e Solano Trindade contribuiu para a cena teatral, com ênfase na visibilidade do negro brasileiro. Falecido em 2016, na Pauliceia Mestre Ananias foi um dos precursores da cultura dos capoeiristas, principalmente na região central, onde ajudou a criar toda uma cena cultural, que até hoje permanece viva na Praça da República.

REPÚBLICA

Um dos mais icônicos representantes de um movimento que desde 1990 se encontra em atividade ininterrupta, apesar das intempéries que enfrentou ao longo desses anos, Mestre Ananias ajudou a construir a roda de capoeira dominical da Praça da República, e foi justamente lá onde ele e o também capoeirista e músico Rodrigo Minhoca se conheceram.

“Conheci o mestre na praça quando eu comecei na capoeira. A primeira notícia de tradição de capoeira em São Paulo foi lá, na República, o reduto dos bambas. Lá a gente viu o Mestre e ficou de cara”.

Sem espaço, aluno, CD ou qualquer outro material de divulgação, Rodrigo conta que a sua presença era arrebatadora, “por conta do gestual forte, marcante, e o jeito inconfundível de tocar e jogar a capoeira”.

MINHOCA

Filho de pai baiano e mãe paulistana, Rodrigo Minhoca, 41, como é conhecido no universo da Capoeira, é um dos fundadores e atual gestor da Casa Mestre Ananias. Ele relata que ao universo afro-baiano dedicou “uma vida toda, desde adolescente”. “Ingressei no mundo da cultura popular através da capoeira. Foi a capoeira que me trouxe o samba, que me trouxe esta casa, os poucos lugares que conheci”. Formado em Administração e criador da Uirapuru, que desde 2004 agencia grupos de cultura popular, a respeito conta que nunca foi sua ideia trabalhar individualmente, “mas sempre no coletivo, como nesta casa, que dá voz aos meus pares, aos meus irmãos”. Perguntado sobre como é manter um reduto de cultura afro-nordestina num bairro lembrado pela forte ligação com a cultura europeia, ele rememora o fato de como o êxodo nordestino para São Paulo foi massivo, formando “um reduto imenso”. Sobre isso, em tom de brincadeira, para ele, no Bixiga, “as pessoas que vivem o dia-a-dia, que a gente encontra no supermercado, são negras e nordestinas, é inevitável”.

O NORTE EM SÃO PAULO

— Foto | Yuri De Lucca Dinalli

Conhecido como o estado que mais recebeu migrantes e imigrantes entre as décadas de 30 e 70, tendo como tira-teima os anos de 50 e 60, São Paulo é lembrada enquanto uma cidade muito receptiva, que abriga diversas culturas, costumes e crenças. Mas, inevitavelmente, ao longo do processo de urbanização, uma cultura se sobrepõe em detrimento de outra, e, geralmente, a cultura sobreposta é a europeia. Isso é simples de explicar: reflita ao lembrar, por exemplo, do bairro da Bela Vista: qual é a primeira referência que vêm a sua cabeça?

Porém, ainda que a cultura italiana seja fortemente identificada com o bairro, de acordo com o Departamento Nacional de Imigração (DNI), entre os anos de 1950 e 1960, 91.048 italianos entraram no Brasil, dos quais cerca de 60% optaram pela estada em São Paulo: antes, as zonas rurais; depois, o centro urbano. Em contrapartida, entre os mesmos anos de 50 e 60, também de acordo com o DNI, 924.509 Nordestinos migraram para a capital paulista. Evidentemente, estes números foram muito mais discrepantes (no que diz respeito a uma maioria italiana) entre um pouco depois de 1860 e um pouco antes do século 30, quando, impulsionados pelas constantes alterações socioeconômicas que afetaram a península itálica, sobretudo a propriedade de terra, diversos imigrantes europeus vieram para o Brasil. Mas, no frigir dos ovos, é possível compreender, a partir dos números, que a maior capital do mundo recebeu mais migrantes que imigrantes no decorrer dos períodos de êxodo.

Imigração estrangeira e nacional para o estado de São Paulo no período 1820-1970

Já a migração nordestina, especialmente para São Paulo, se intensificou entre 1950 e 60 por conta do período de fortes secas que arrebatou a região, juntamente com uma altíssima densidade demográfica, tendo como apogeu os anos de 1951, 52 e 53, que compreende o início do segundo governo Vargas e foram decisivos para este enorme êxodo. Numa pesquisa autoral realizada em nossas redes sociais, de 45 pessoas que interagiram com a publicação, 28% se identificaram enquanto descendentes de nordestinos e 17% de italianos. Com este povo, claro, veio a sua cultura, desde a comida, o gestual, a fala e os seus costumes, características que hoje se encontram presentes no imaginário paulistano.

CAPOEIRA NO BIXIGA

— Foto | Yuri De Lucca Dinalli

Importante lembrar que tudo isso se deu, como diferente não poderia ser, por conta de uma rasteira aproximação de Rodrigo e seus amigos com Ananias que, na época, era “um tanto hostil”. Ele e Geraldo Baiano, do consagrado Grupo Cativeiro, iam juntos para a praça da República e, depois de algum tempo, começaram a levar Ananias até Diadema, onde treinavam. “A gente passava a tarde lá, levava o mestre, fazia churrasco, cantava…”, ele busca na memória. Na ginga e no jogo eles foram se aproximando e criando os laços que hoje amarram essa história de amor à cultura popular.

“Eu fiquei alguns anos procurando espaço. Daí eu entendi que a República, o centro, por conta da força da capoeira paulistana estar nesse lugar, era o cenário perfeito. E foi uma coincidência, porque o dono do imóvel conhecia minha irmã e perguntou se eu ainda queria fazer aquele espaço cultural”.

Rodrigo lembra que pegou a chave do imóvel localizado à Rua Conselheiro Ramalho, 939 em abril de 2007 e, após um mês destinado a reformas, inaugurou o espaço. Enfim, aquilo que começou apenas como uma maneira de se aproximar de um mestre para adquirir conhecimento e aprender os melindres do toque, do canto e do jogo da capoeira se tornou muito mais do que mera ingenuidade de moleque. Nascia um projeto social.

— Foto | Yuri De Lucca Dinalli

CASA DE CULTURA

A casa, que já contou com a participação de cerca de 500 famílias ao longo desses 13 anos, “em sua grande maioria de origem nordestina”, como lembra Minhoca, colabora, atualmente, com cerca de 40 pessoas. São jovens, adultos e idosos que participam das mais diversas atividades, sempre com o envolvimento da cultura popular como pano de fano. Sobre os frequentadores do espaço, que usufruem dele, Rodrigo enfatiza que não tem “o costume de se reportar a quem está aqui como ‘atendido’, mas sim como uma pessoas que faz parte da casa. A gente não atende, a gente convive”.

Na política da boa convivência, a Casa Mestre Ananias oferece os cursos de rabeca, pilates e samba de roda, sendo os dois últimos voltados para a terceira idade, de maneira a “trazer bem-estar e fortalecer a cultura negra”; artes, culinária, cerâmica, teatro e capoeira para jovens de até 17 anos. Estes jovens, por sua vez, participam do que Minhoca chama de Educação Integral, sendo um “complemento da educação familiar e formal”. A única atividade paga é a aula de capoeira para adultos, às terças a noite, que, também, “são processos de transmissão oral”.

— Foto | Yuri De Lucca Dinalli

Porém, mesmo oferecendo essa variedade de atividades gratuitas, ele lamenta o fato de, neste ano, a turma de violão ter de ser cancelada por falta de adesão do público, mesmo com a atividade sendo divulgada nas escolas da região. “Estamos num momento difícil de adesão do adolescente. Em 13 anos, estamos cada vez com mais dificuldade. Não tô nem falando de capoeira. Falo de teatro, de violão, artes…”. Permitindo uma breve, porém mais aprofundada reflexão, segundo ele vivemos “um processo político que não favorece a formação da cultura negra e outros elementos. É uma luta covarde”.

O espaço funciona sem nenhum apoio, público ou privado, e é mantido apenas com o dinheiro arrecadado na venda de camisetas, CDs, bolsas e outros artigos, além das festas anuais, que são quatro — e grandes: A festa de aniversário da casa (que era originalmente a comemoração do aniversário de Ananias), em maio; a festa Junina, a ser realizada em 30/06 próximo; a de Cosme e Damião em setembro e a Homenagem ao Mestre, em dezembro, são o maior fruto de renda da instituição, no momento. Em todas elas, é servido um almoço para a comunidade do bairro regado por muita música regional, como o samba, a embolada, o forró e o caruru.

O espaço ainda abriga algumas editoras, no estilo coworking, uma sala de reuniões e um pequeno anfiteatro. Os últimos dois podem ser alugados sob demanda. Se esquivando e resistindo como um reduto afro-nordestino no coração do bairro mais italiano de São Paulo, Rodrigo Minhoca toca os projetos sociais da Casa Mestre Ananias, que está sempre aberta ao público, com empatia, respeito e planejamento.

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