Admirado, estupefato, embasbacado, assombrado, pasmo, boquiaberto, atônito. Estes foram alguns dos sentimentos que tive quando conheci a 2001 Video. Em um primeiro momento, ela me assustou. Isto porque tive uma clara noção do tamanho da minha ignorância cinematográfica. Eram milhares de filmes que clamavam serem vistos. Passado o susto inicial, vi que na verdade aquilo não significava um motivo de preocupação, mas sim de euforia. Por mais obvia que pudesse ser a conta, enxerguei com clareza, que quantos mais filmes me faltassem ver, mais filmes eu veria. E assistir a filmes era e continua sendo, sob qualquer perspectiva, um gigantesco prazer.
Ao longo dos anos que se seguiram, a 2001 se tornou uma espécie de companheira inseparável. São incontáveis as descobertas, não só sobre o cinema, mas sobre a vida e os diretores que conheci através dela. Muito mais do que uma locadora de filmes, se tornou em uma escola. Escavando na imensidão de lembranças que me recordo de ter vivido graças a ela, busquei nas recordações mais íntimas, descrever “um dia”, dos muitos que a 2001 me proporcionou.
Era um sábado de manhã, e entrei sem saber ao certo o que buscava. E isto era o mais bacana nas locadoras de filmes. A descoberta que ela proporcionava. Era algo que me fazia vibrar tanto quanto ao assistir a um gol do meu time de futebol: encontrar algo que eu buscava há muito tempo e que tinha “aparecido”. Neste dia, a preciosidade foi Cabra Marcado para Morrer, Eduardo Coutinho, 1984.
Considerado por muitos o mais importante documentário brasileiro de todos os tempos, era privilegio que quem tinha conseguido assistir em algum festival. Após anos de busca, o filme finalmente foi lançado em dvd. Para completar a maratona cinematográfica, eu não tinha nada em mente, a não ser as prateleiras que se ofereciam à minha frente. Escolhi Band à part, Jean-Luc Godard, 1964. Godard está longe de ser um dos meus diretores de cinema favoritos. Não chega nem perto de ser o meu diretor de cinema francês favorito. Mas é claro, ô respeito profundamente, e resolvi arriscar.
O terceiro e último filme a me acompanhar naquele final de semana foi Johnny Vai à Guerra, EUA, 1971, escrito e dirigido por Dalton Trumbo. Este foi o mais arriscado. Naquele época não sabia quem era Trumbo. É difícil explicar o que chamava a atenção em um dvd discreto, sem recomendação alguma, escondido entre muitos outros, entre as sessões de arte e de cinema europeu. Não sei porque o escolhi, mas levando Johnny Vai à Guerra, estava ganhando, sem saber, o bilhete premiado.
Uma tarde de sábado com Coutinho
Comecei por Cabra Marcado para Morrer. As vezes, dizem que uma expectativa exagerada pode colocar tudo a perder. Mas neste caso, os anos de espera apenas fizeram jus a um filme que é um clássico absoluto do cinema brasileiro de não-ficção. Mais do que a obra em si, é possível entender que o artista Eduardo Coutinho foi moldado através daquela experiência.
Fazendo este filme, parece ter inventado um tipo de cinema, onde a matéria-prima era a franqueza e a falta de presunção. Querendo alcançar a simplicidade, encontrou a verdade.
Uma coisa me marca profundamente neste obra até hoje: o trabalho imensurável que o longa-metragem demandou. Foram anos de dedicação. Uma persistência que poucas pessoas parecem ter. Sem perceber, mas sentindo, passei a carregar dentro de mim a sensação de uma persistência Homérica.
Uma noite de sábado com Godard
Minhas restrições a Jean-Luc Godard existem pelo incomodo que me causa notar sua preocupação eterna em chocar. Isto cria uma gratuidade que não faz bem a nenhum tipo de cinema. Mas entre os vinte e poucos filmes dele que já havia assistido até então, sempre lembro com carinho de “Acossado”, 1960, que considero uma obra muito especial. Para minha surpresa, Band `a part trás um Godard mais leve, solto, e com um punhado de cenas memoráveis. Na minha opinião é seu melhor filme. Me causou até mesmo um certo arrependimento por esnobar um dos poucos remanescentes da Nouvelle Vague.
Ao assistir a sequencia em que os três protagonistas dançam em um bar, minha sensação era de quem estava em um estrada, com a cara para fora do carro, sentindo o vento bater no meu rosto. E eu estando sozinho no meu quarto. Como um filme pode nos fazer sentir algo assim? Caríssimo webleitor, eu também não tenho a resposta. Mas me lembro, que após ver o filme, exibi durante horas um sorriso leve no rosto. Parecia que estava sorrindo para mim mesmo. Ouso dizer que naquela noite, fui dormir sorrindo e mantive aquele expressão durante todos os sonhos.
Uma manhã de domingo com Trumbo
E de onde eu menos esperava alguma coisa, veio a grande surpresa: Johnny Vai à Guerra é um destes filmes que te fazem mudar a forma de encarar a vida. Em menos de duas horas, é capaz de criar uma enxurrada de sensações poderosas. E não é um longa-metragem que costumam indicar na faculdade de cinema. Nem aparece em nenhuma espécie de guia dos filmes que precisam ser vistos. Muito menos faz parte do boca-a-boca de cinéfilos. Graças a 2001 e ao acaso, tive esta sorte. Representou um choque de realidade comparável apenas ao dia em que terminei de ler 1984, de George Orwell. Sem posições apocalípticas ou pessimistas, a verdade é que nunca mais olhei da mesma forma para uma disputa bélica, seja ela atual ou do passado.
Também passei a enxergar os pesquisadores e cientistas de outra maneira. Quantos anos seriam necessários de estudos e aulas para criar estas dúvidas na cabeça de uma pessoa? Este filme fez tudo isso em 120 minutos.
Vende-se tudo
Era véspera da véspera do natal de 2015 quando recebi o e-mail que há tempos temia ver bater à porta da minha caixa de entrada. Ele dizia o seguinte:
“Caro cliente, é com pesar que informamos o encerramento das nossas atividades nas lojas físicas da rede 2001 vídeo.” e algumas linhas abaixo: “2001 Vende tudo! Todo acervo, móveis e equipamentos de loja.”
Caríssimo webleitor, imagine um aficionado por carros entrando em uma loja com milhares de possantes disponíveis: Ferrari, Porche, BMW, e inúmeras marcas que ele nem sabia que existiam. Durante grande parte da minha vida, esta foi a minha sensação ao entrar em locadoras de filmes. A 2001, em especial, estava para os cinéfilos assim como a Fantástica fábrica de chocolates estaria para um chocólatra. Não possuo vocabulário suficiente a ponto de conseguir traduzir o que ela representou na minha vida. Trilhar o caminho do cinema sem ela, seria como andar na escuridão completa sem uma lanterna.
E sem saber como achar “aquele dvd discreto, sem recomendação alguma, escondido, entre as sessões de arte e de cinema europeu”, só tenho que celebrar ter vivido em uma época, que já parece ser assustadoramente longínqua, onde existiu uma Fantástica fábrica de sonhos chamada 2001.
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