De Ranger Rover, Evoke
Na pista, eu arraso
Pro Instagram, um close
Ela comenta ‘eu caso’
As palavras são do funkeiro Mc Guime, esbanjando sem pudor o carro, o champagne e a mina no camarote fechado. Guime é um dos nomes do funk ostentação, fenômeno que, só no canal do produtor de vídeo Kondzilla no YouTube, já tem mais de 50 milhões de visualizações.
Faria sentido pensar que Mc Guime é tipicamente popular entre a classe média e alta, classes que rapidamente elegem seus ídolos como representantes de si mesmos. Mas como explicar que, mesmo esbanjando luxos como o Rei do Camarote, a periferia continua fiel aos MCs e vice-versa? E até onde há motivo para controvérsia?
O documentário do Kondzilla, produtor de clipes de funkeiros no estilo funk ostentação, coloca ainda mais lenha na fogueira sobre esse estilo controverso de se fazer funk. Conforme nos contam, os contornos mais definidos começaram em Santos, e o estilo ganhou adeptos fora das comunidades. Isso, por si só, já é explosivo: invade o funk paulista, conhecido por ser poesia de resistência e até violento, até o funk carioca, notadamente hedonista. Assim começa, entre os próprios artistas, a polêmica: os meninos franzinos do litoral de São Paulo influenciando o eixo estabilizado, dos bonés e calças largas de São Paulo até a babilônia dos morros do Rio.
Mas não para por aí, porque até onde transparece, a influência veio como acontece na indústria musical: um faz, outro homenageia, outro adapta, e a música se transforma. Inflamados mesmo estão os debates entre intelectuais e acadêmicos, que procuram se integrar, entender, defender e até se associar a movimentos iniciados por comunidades carentes. Os humanistas estão nos protestos, na mídia Ninja, no Fora do Eixo, estudando alternativas ao capitalismo violento que formou a sociedade brasileira, essencialmente classicista e cheia de preconceitos, e ensinando o vocabulário acadêmico para estes agentes de transformação: em entrevistas, eles aparecem usando termos como “pós-marca”, “subjetividade”, “precariado cognitivo”.
Este apoio quase irrestrito — basta ver o uníssono acadêmico quando se fala no seu popstar mais festejado, Pablo Capilé e o Fora do Eixo — se divide no movimento do funk ostentação. De maneira geral, os estudiosos querem ver alternativas ao capitalismo, ruptura, negação, e não um hack interno, ainda que muitas dessas alternativas não sejam novas (embora refashionadas, renomeadas com neologismos). Desejável é, até agora, o “hack externo” (“não sou capitalista, mas um organismo memético que age como tal para explorar o sistema de fora dele”). No funk ostentação, não: ali “o sistema é nosso”.
Feito este ensejo bem resumido da estrutura teórica onde parecem operar estas manifestações sociológicas, vamos a alguns dos efeitos. Para começar, o que é argumentado no documentário do Kondzilla é que os funkeiros começaram a “dar ideia” aos seus fãs de que legal não é destruir o sistema, mas conquistá-lo. Não se incita a violência, a resistência, a transformação política, mas a curtição de uma balada onde se tem grana para gastar. E, segundo os pioneiros, isso acabou estimulando estes jovens a tentar sua chance através do próprio sistema. Seria portanto combinação de estudo, trabalho e oportunidade? Se sim, estamos vendo a manifestação política sair do discurso e entrar na prática, como efeito, por exemplo, de um país com emprego e mobilidade social.
Talvez a periferia esteja se reinventando, afastando-se da autopiedade necessária a uma sociedade onde o rótulo de pobre era permanente: o pobre entendendo-se como pobre, e sabendo que o será até morrer, desenvolve o orgulho de classe necessário à sua dignidade. Numa sociedade com mobilidade social, este rótulo pode ser visto como um entrave à tentativa de mudar de vida: exorciza-se o engessamento social ostentando a riqueza, ao mesmo tempo que não se abandona os valores e as origens dos que emergem. Periferia, assim, deixa de ser sinônimo de pobreza e passa a ser sinônimo de uma cultura descolada de classe social — como é verdade em muitos países da Europa, que têm sociedades organizadas por hábitos, preferências e escolhas, e não necessariamente poder aquisitivo.
Já vimos essa história? Sim, já vimos, com os americanos, na máxima do 50 Cent por exemplo, “get rich or die trying”. E é aí que mora o perigo, porque o capitalismo americano é considerado no Brasil como a causa de quase todas as nossas mazelas: um sistema excludente, de exploração, onde a pobreza e a riqueza contrastante são sinais de sua robustez. Características que não deixam de ser verdade, em especial quando vemos a América depois da crise de Wall Street em 2008. Mas é preciso perceber que as mazelas brasileiras não podem ser todas fruto do capitalismo americano. Essa crítica ferrenha se consolidou quando o Brasil era visto na divisão internacional do trabalho simplesmente como “mão de obra barata”, ainda com o estigma de sermos “colônia de exploração”. Ainda é esse o nosso papel ou estamos caminhando para a nossa própria versão do capitalismo? Afinal, existem várias: a da Europa, a dos países nórdicos, a da China (e talvez em breve a do Uruguai, com Pepe Mujica?).
É interessante observar que no funk ostentação há uma espécie de celebração mista de classe — a classe excluída ascendendo no sistema; o pobre-rico, que fica rico sem se modificar, realizando seus sonhos de pobre, e não seus novos sonhos de rico; diferente também do novo-rico, que tem sérios problemas de autenticidade — sem haver propriamente uma gentrificação dos que ascendem. Os que ascendem não querem ser parte da elite que já existe, mas sim celebrar o seu lugar dentro do sistema. Manifestação paralela disso, é o #rolezinho nos shoppings, onde a presença de adolescentes da periferia apavorou a classe média. É claro, os shoppings foram inventados para separar essas classes, e o #rolezinho dizia que a separação havia acabado.
Por que ostentar?
A prof. Ivana Bentes (professora e pesquisadora da UFRJ, que foi inclusive minha professora, e acompanha movimentos sociais como Mídia Ninja e Fora do Eixo) publicou no seu Facebook uma nota sobre o funk ostentação:
Durante décadas as novelas, o noticiário sobre o fabuloso Eike e sua princesa de coleira, a revista Caras (…) ensinaram o que é ser “de elite” (…) Ensinaram como essa elite estava em um outro lugar, patamar e classe, INATINGÍVEL. E que era melhor aos pobres “porem-se no seu devido lugar”. (Leia o post todo aqui)
A motivação é clara, foi assim que aprendemos o que é “sucesso” ou “ser bem sucedido”. Essa cultura midiática de celebridade, como acontece nos Estados Unidos. Contudo, os funkeiros não demonstram o mesmo estilo de vida inatingível. Esta é uma questão complexa. Em primeiro lugar, os clipes não demonstram essa propriedade introjetada do “rico”, do rico de novela, seus hábitos e círculos sociais. A ostentação mostra carro, relógio, tênis e balada, mulher e bebida. E acaba por aí: sintomática é a cena no documentário de Kondzilla onde o funkeiro sai de sua casa de classe média, no bairro onde cresceu, para entrar num carro novinho em folha e sair para o seu rolê. O funkeiro é um artista, a comunidade o elegeu, e ele desfruta de privilégios como tal (as regalias são financiadas pelo apoio do público). É a recriação localizada de um star system à americana, uma meritocracia onde não há príncipes ou herdeiros, mas os v1d4L0kA com a dor e a delícia de ser o que são.
O funk ostentação parece ser combustível hiperestimulante para solteiros, acabando por desacelerar o bling-bling depois de firmarem o namoro sério com a mina que encontraram na balada. A ostentação parece mais ligada a um momento do que à vida real; funkeiros de pulseira de ouro ou Valesca Popozuda num trono de rainha parecem ser mais fantasia do que modelo de comportamento.
Se vamos no bonde americano do bling-bling, temos versão própria na maneira que vemos a mulher na cultura do funk. Para ser breve, porque é muito pano para manga, até dentro da ostentação brasileira a figura feminina tem variações. No funk ostentação, apesar de ainda objetificadas até certo ponto (esse sexismo à brasileira, antigo e contemporâneo), são “princesas”, “lindas”, e ganham um tratamento curiosamente respeitoso; no Rio são rainhas, senhoras do próprio corpo e, é claro, tendo na própria Valeska, a imagem da rainha, praticamente queen of fucking everything — ecos do trovadorismo rudimentar latino? —, mostrando que, apesar do bling e de outras semelhanças, somos definitivamente diferentes do hip hop yankee, que parece impor hierarquia de gêneros, tratando a mulher o tempo todo por “bitch”.
Passo à frente?
Por outro lado, é o tipo de cultura que estimula o fã a trabalhar duro e comprar o tênis Mizuno de mil reais, o relógio caro, os óculos escuros e o carro financiado a perder de vista. Isso se agrava com a cultura automobilística insustentável, com a oportunidade para os publicitários, e com a parcela que, ainda mais vulnerável, não consegue atingir a marca. Sem dúvida, há problemas no que é valorizado, como a estrutura hierarquizada — financeiramente hierarquizada — dessa cultura, estrutura à qual o Fora do Eixo tentou reagir, fazendo sua sociedade “horizontal” e que, até onde parece, não se dava na prática rigorosamente vertical dentro da organização, segundo os relatos dos dissidentes. Assim, se o pobre tem a chance de trabalhar duro para realizar seus sonhos, a questão talvez seja, depois de realizados ou a meio-caminho, questionar por que sonhamos com isso ou com aquilo.
Na sociedade produtiva onde vivemos — onde o que vale é o montante da nossa produção pessoal, do trabalho em si ao newsfeed do Facebook — a tecnologia custa, se renova sem necessidade e existir é, em parte, na esfera virtual, abastecida pelos smartphones e afins. A cultura de ostentação, apesar de abraçar o sistema, parece ser uma certa desforra, e não retrocesso; um estágio de euforia, reativo à cultura anterior, em certa decadência, do elitismo brasileiro.
Além de ingênuo, esse tipo de discurso me parece passageiro, tanto para os funkeiros em si, no nível pessoal, quanto para a cena musical ou a própria cultura da periferia. A maioria dos rappers americanos, quando amadurece, fala menos de limousines brancas e bling-bling e acaba por tocar questões mais profundas, antes negligenciadas. O barato, por enquanto, é ver que a periferia está existindo, e povoando os camarotes, as baladas, as lojas da Nike e, quando o funkeiro se sai bem, até a concessionária da Land Rover.
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