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Conto: Robson Alkmim | Ilustração: Filipe Rocha

Ângela era minha vizinha. Ela morava no apartamento 202, eu ainda moro no 203. Na verdade, demorei muitos meses até conseguir avistá-la pela primeira vez. Eu somente sabia que alguém morava naquele apartamento por conta do síndico que certa vez me confidenciou que a minha vizinha era a mulher mais bonita do prédio, e que eu tinha sorte por morar perto do paraíso. Quis saber mais sobre ela, então, ele me revelou seu nome, como também, as qualidades físicas: alta, morena, lábios grossos, cabelos ondulados e volumosos, um pouco misteriosa, de olhar distante. Um quitute, precisa ver!, dizia-me o síndico todo entusiasmado. Pensei que talvez aquele fosse seu único prazer verdadeiro durante o dia, vê-la passar.

Daquele apartamento de Ângela jamais eu ouvi uma voz sequer, nem de móveis, televisão, música, animais ou outras pessoas. Mas meu imaginário, seguindo as sugestões visuais que o síndico relatara, começou a funcionar no sentido anti-horário de minha paz. Eu tinha uma namorada, a Luísa, que eu gostava, mas que vivia me chateando com pequenos problemas que se metamorfoseavam em monstros com várias bocas, o que arrastava nosso namoro em direção ao precipício do desamor. E como a quantidade desses monstros crescia numa proporção assustadora, eu mais pensava em Ângela, coisa de gente tímida, admito, uma segurança no caso de perder Luísa. Sendo assim, agarrei-me à fantasia, como alguém que levanta as mãos no meio da rua acreditando que vai encostar numa nuvem.

Mas Ângela nem chegava a ser uma nuvem visível, como eu poderia encontrar o momento certo para conhecê-la? Eu saía de manhã para trabalhar e voltava à noite, cansado de escritório de contabilidade.

Numa noite, Luísa veio aqui em casa. Seus olhos faiscavam. Ela já havia planejado viajar para Nova York nas férias e eu lhe disse que não teria dinheiro para isso. Seus olhos pegaram fogo. Me ameaçou com uma faca de ponta redonda, jogou os meus cd’s no chão da sala, chutou o meu gato Philomeno, riscou a tela do meu computador e quebrou duas canecas na cozinha. Eu a observava com os olhos mais cansados que assustados. Secretamente torcia para que ela se jogasse da janela, o tesão pela miúda já tinha virado pó. Após me xingar e dizer que tudo estava terminado e se mandar batendo o pé, ela deixou a porta de entrada escancarada. Enquanto me dirigia ao corredor para me certificar que a maluca havia descido pelo elevador, Ângela apareceu à sua porta. Ela era exatamente como a descrição que o zelador fizera, mas um pouco diferente da construção de meu imaginário, não fisicamente, pois meu coração deve ter batido descompassado com a aparição daquele ser perfeito enrolado numa toalha amarela, mas pela frase dita a seguir entre seu lábios vermelhos:

– Quando nevar, desaparecerei.

E ela fechou a porta. Porra, fiquei parado descalço sobre o chão gelado durante uns bons dez minutos. Tinha certeza que ela reabriria a porta, precisava ouvir aquilo novamente! Mas ela não apareceu e naquela noite não dormi.

Nos dias seguintes eu fiquei transtornado. Cogitei todas as possibilidades de interpretar o que ouvira de Ângela. De tanto pensar sonhei com ela sob a neve, no meio da rua, enquanto eu repetia seu nome e ela desaparecia. Eu acordava suado em pleno inverno. Como nevar em São Paulo?, um completo absurdo, ela deve ser louca, eu pensava irritado. A ideia de ir ao seu apartamento eu tinha como descartada, não saberia a reação daquela estranha e fascinante mulher.

Até que numa outra noite, quase meia-noite, quando eu já estava cochilando com o laptop sobre o meu peito e Philomeno sobre o laptop, fui despertado por batidas na porta. A princípio achei que estava sonhando, mas as batidas se repetiram e me levantei sob protestos do meu gato. Cambaleei até à porta ainda com a roupa que cheguei do trabalho, um terno quente. Novas batidas. Perguntei quem era e novas batidas se sucederam. Entreabri a porta e lá estava a cabeleira cobrindo os olhos de Ângela. Ela vestida num jeans e uma blusa vermelha e grossa. Abri um pouco mais a porta. Ela sorriu como se eu fosse um amigo. Parecia muito tranquila. E dos seus lábios ouvi novamente a frase: – Quando nevar, desaparecerei.

Fiquei atordoado, comecei a achar aquilo uma brincadeira, só poderia ser. Mas Ângela tocou o meu rosto, suas mãos eram gélidas, o que contrastava com a sua pele de cor quente. Ela me puxou e me beijou nos lábios. Um beijo curto, vazio e triste. Depois, ela recuou, seu rosto perdia o sorriso aos poucos. Atraído por ela andei em sua direção, e ela apertou o botão para chamar o elevador. Eu disse alguma coisa que nem eu próprio compreendi. Fiquei parado a um metro dela, observando seu corpo, tentando ler seus movimentos. O elevador parou e abriu as portas. Ela entrou, eu a segui.

Durante a descida, nada de olhares nem palavras. Minha respiração entrecortada refletia minha angústia naquela situação. Não sabia onde me metera, muito menos o destino da minha ousadia, ou seria a ousadia de Ângela? Por fim, não saberei.

O elevador chegou ao térreo. A mulher saiu e continuei a seguindo, ninguém nos via, as câmeras da entrada do apartamento passavam por conserto como havia me falado o síndico. Saímos à rua. Ventava gelado sob o céu limpo. Ninguém em lugar algum. Ângela andava elegantemente, sem esforço para parecer uma dama. Eu ia atrás, com receios idiotas, quase desistindo daquela aventura, mas continuei, magnetizado pelo toc toc de seus sapatos que ecoavam na calçada.

Ela parou sob uma forte luz duma lâmpada de um poste. E, como no sonho, ela me encarou com seus olhos brilhantes, atravessando meu coração enternecido. Eu sabia o que aconteceria, mesmo assim não acreditava, tudo poderia parar e levá-la para o meu apartamento.

Mas a realidade continuou imitando o sonho. Começou a nevar. Senti os pequenos flocos se espalhando pelo meu corpo ao mesmo tempo em que ia encobrindo os cabelos de Ângela que começava a balbuciar novas palavras.

– Agora, eu posso desaparecer.

A neve engrossou, o vento aumentou e toda minha visão se turvou. Eu tentava me concentrar no corpo à minha frente, mas o frio foi me vencendo. Encolhi os ombros, abracei-me, apertei os olhos e gritei. A neve não fazia qualquer som e quando abri meus olhos, na verdade, não havia mais neve e nem Ângela.

Não sabia o que fazer, sempre havia acordado nesta parte do sonho. Acabei voltando para dentro do prédio. Ao chegar ao meu andar, a porta do apartamento de Ângela estava entreaberta. Eu entrei e não havia móvel algum. As paredes brancas e frias davam o tom melancólico de solidão. Visitei todos os cômodos, observando um a um e me sentindo triste. Até que num canto do que seria a sala, avistei um frasco médio de vidro e o peguei. Voltando-o contra a luz da lua cheia, percebi que o que nele continha era uma grande quantidade de cinzas. Segurei o vidro com as duas mãos sentindo o calor que ele emanava. Senti-me febril, numa mesma sensação de estar apaixonado. Ali, entendi tudo.

Saí do apartamento de Ângela e voltei ao meu, colocando o frasco sobre a minha cama, onde pude dormir novamente acompanhado.

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