Biblioteca_andrevicentini_

Foto: Andre Vicentini | Texto: Robson Alkmim

 

Eu trabalho num sebo há mais de duas décadas, herança de meu falecido pai. Meus dias se passam em meio ao cheiro do passado em livros que as pessoas dispensaram de suas vidas em troca de grana, objetivo único, cheio de explicações para valorizar sua venda. Outro pessoal, com outra grana, comprará esses livros usados por objetivos diversos, sem explicações, quase sempre pagando o que o livro vale. Logicamente, quem dá o veredito sobre o livro e seu preço, sou eu.

Muita gente aparece aqui com material zuado: Livros sem capa ou mesmo sem páginas essenciais; com desenhos nos cantos ou sublinhados em diversos parágrafos, bem colorido…; grampeados, amarrados, colados com Tenaz ou Super Bonder. Na verdade poucos desse tipo eu compro, prefiro os bem cuidados, porque combina mais com meu estabelecimento que se parece com uma biblioteca europeia, foi o que eu já ouvi, com orgulho certa vez de uma amiga. E esse esmero aprendi com meu pai que sempre teve muito carinho por este lugar.

Ainda falando das pessoas que aparecem aqui, tem de tudo, de estudantes a aposentados, de mendigos a grandes empresários, gente de direita ou de esquerda ou coisa alguma. Falam de suas vidas, que não tenho muita paciência para ouvir, e outros que não falam nada, o que lhes agradeço profundamente. Tem gente que vem há anos, só pra olhar as prateleiras e outros que querem saber das novidades como se aqui fosse uma livraria de shopping. Pelo menos nunca fui assaltado (coisa rara), livros não fazem sucesso neste tipo de ramo de atividade.

Situações estranhas sempre acontecem, é normal. Mas uma vez, ou melhor, durante exatas dez semanas, tive contato com uma cliente completamente diferente.

Como disse acima, as pessoas vendem seus livros como se quisessem restituir o que foi gasto anteriormente, mesmo quando presenteados. Raramente recebo doações, elas geralmente vão para as bibliotecas ou escolas, o que acho o correto, não sou ganancioso.

Mas numa manhã de segunda, ela apareceu pela primeira vez. Nunca havia a visto, nem mesmo meus funcionários me disseram que a viram no sebo antes. Aquela mulher devia ter uns 50 anos. Alta, usava um vestido negro e longo que se ajustava ao seu corpo um pouco gordo. Era adornada por pulseiras, brincos e um colar brilhante. Tinha a pele pálida sobre a grossa camada de maquiagem sobre marcas da idade. Tristes olhos sob os óculos escuros, a boca fina de um vermelho de batom sem graça, o cabelo rígido e loiro com raízes negras, um penteado que me lembrava a Hebe, o que me divertiu veladamente naquele instante. Elegante, ela andou calma em minha direção (eu quase sempre fico no balcão de pagamento), sacou da bolsa negra muito chique um livro e o pousou na minha frente, sobre o balcão. Percebi que sua mão tremia. E ela, numa voz tímida, que contrastava com a impressão altiva que me passava, falou:

– Não quero vender. Pode ficar com o senhor. Para a sua loja.

Virou-se e saiu do sebo com o mesmo passo tranquilo e constante de toc-toc dos sapatos. Sem entender bulhufas, examinei o livro. Um Dostoiévski, “Crime e Castigo”, intacto, mas que datava de uma edição dos anos 80. Aceitei a “doação” com curiosidade, pois como é de praxe em muitos livros que aparecem em sebos e isso não se luta contra, havia uma dedicatória:

“Carla, desde que nos conhecemos na faculdade, tive certeza de que te amaria. Isso aconteceu minha pequena flor e hoje sei que será eterno!”

Quem assinava era um tal de Rubens, a letra corrida, horrível, imaginei que fosse estudante de medicina. Botei o Dostoiévski com os outros Dostoiévski na prateleira dos russos do século XIX.

Na outra segunda ela reapareceu, usava outro vestido, sempre seria outro vestido, mas o penteado seria o mesmo de sempre. Desta vez nada falou, talvez me reconhecendo e torcendo para que eu a reconhecesse. Deixou outro livro sobre a bancada e foi embora. Era um Machado de Assis, “Senhora”. Nova dedicatória de amor e um novo assinante, pelo menos este tinha uma letra legível.

Durante nove segundas ela me deu nove livros de literatura e uma angústia crescente. Todos os livros continham dedicatórias, provavelmente de amores do passado, pensei. Cada um inventava um apelido. Se o primeiro começou com “Carla”, os outros vinham com “Carlinha; Cacá; Cá; Mimo; Margarida; Petit; Amorzinho; Xuxu”. Fiquei, a cada leitura, imaginando a cara daquela senhora se eu a chamasse por um daqueles apelidos. Não tinha coragem. Havia uma integridade silenciosa, uma confiança na minha pessoa que clamava pela minha discrição.

Na verdade, a partir do terceiro livro, levei-os para casa, recolhendo os dois primeiros que estavam no sebo. Debruçado sobre os nove livros na minha cama, tentava montar algum quebra-cabeça. A única fonte de informação que pude julgar secreta, e que provavelmente só a mulher sabia, foi a data de cada edição dos livros. Havia uma cronologia nas edições, do primeiro até o nono, de 1981 até 2002. Tomei essa descoberta como um choque. Queria entender, mas para descobrir teria que perguntar a ela, caso ela aparecesse novamente. Talvez houvesse uma outra data mais recente (O ano em que se deu este fato foi o de 2010). Esse sentimento intrigante, que me tirou o sono durante dias, foi revelado na décima segunda-feira quando a mulher veio ao sebo.

Ela estava com um vestido verde. Chovia. Naquele dia percebi um homem vestido num terno e que a acompanhava, com aspecto de segurança ele segurava um guarda-chuva, mas ficou na entrada. A mulher se aproximou, colocou um livro da Clarice Lispector na minha frente e se deu o seguinte diálogo que me surpreendeu e me marcou profundamente:

– Este é o último livro.

– Senhora, eu…

– Eu já sei, devo ter despertado sua curiosidade, é lógico.

– Sim, mas não entendi ainda por que escolheu meu sebo…

– Você leu as dedicatórias, não?

– Li, me desculpe…

– Não há razão para desculpas. Eu quis me desfazer de episódios da minha vida e que foram dolorosos para mim.

– Por que escolheu aqui?

– No terceiro livro havia somente uma vogal como assinatura.

– “A.” Sim, somente um “A”.

– Pois bem, este “A”, era de Antônio.

– Como assim?

– Bem… Antônio… seu pai.

– Meu pai? Você conheceu meu pai?

– Conheci seu pai e sua mãe Alice, que morreu de câncer quando você era criança. Seus pais eram amigos de meu irmão.

– Mas…

– Iniciei um relacionamento com seu pai meses após a morte de Alice. Não precisa dizer nada, é coisa passada, não durou dois meses, ele me decepcionou. Seu pai era um homem íntegro, mas ele ficou tremendamente abatido com a morte de sua mãe, pode ter certeza disto. Ele quis viver novamente, a ponto de dizer que me amava, quis ajudá-lo, o que foi impossível e com muita tristeza percebi que seus sentimentos por mim não eram verdadeiros. Ele me usou sem noção do que fazia, e me separei dele pois não me aguentei na posição de muletas. Logo depois ele faleceu no acidente de carro. Fui ao seu enterro e me lembro de você pequeno chorando, agarrado a uma tia. Eu amei seu pai com ardor, como amei tantos outros, não há nada a comentar sobre isso e você deve ter tido a noção de minha frustração por tantos amores mortos…

– Não posso negar que isso tudo realmente é incrível, senhora Carla…

– Não tenha raiva de mim, você me fez um favor, prometo não voltar mais.

Ela não disse mais nada. Tocou meus lábios que se preparavam para dizer mais coisas vagas, pois eu nem sabia mais o que perguntar, e foi embora sob o guarda-chuva do seu acompanhante. Abri o livro e havia uma nova dedicatória:

“Guarde este livro contigo enquanto viver com carinho, pois a vida não dura muito, os livros e as histórias ficam, eles sim são eternos, além de nós, além de nossa memória.”

Assinado: Carla.

A edição era daquele ano, um livro novo, “A paixão segundo G.H.”

Nunca mais aquela senhora apareceu.

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